quinta-feira, abril 29

Mais ou menos azul

A mão no copo. O copo na mão. Olhar perdido e solto. Sobretudo solto. Perdida era a imagem que o trouxera até ali. Entre dois copos tinha sugerido uma ida ao miradoiro, que se debruçava sobre a cidade, e dali via-se tudo. tudo se via menos as mãos que trazia escondidas sempre nos bolsos, onde guardadava quase toda a cidade, a sua e os que ía apanhando pelo caminho. Homem cauteloso que era, nunca perdia nada de importante. Dos bolsos para o miradoiro, do miradoiro estendido para o rio, sempre ía afogar as mágoas no Tejo. Do rio para o miradoiro.
No banco do miradoiro avistavam agora o nascer do dia. começaram a acariciar-se.Orientavam-se desorientavam-se. os corpos puxavam, puxavam, puxavam. No meio das pernas da amiga, com o seu sexo sempre disposto a tudo, não se conteve e fez sexo com ela, ali mesmo no miradoiro, onde os olhares se entornavam por toda a cidade.
No Banco onde agora encostavam o pensamento beijavam-se e esperavam o levantar do sol. Levantaram-se ele com as mãos enrroladas nos bolsos. Sempre. Os olhos no chão, onde o céu espelhava no seu melhor passos desviados, porque as sombras não se pisam, têm vida, encerradas em cúmulos de velocidade, não se pisam. Olhos no rio, o rio nos olhos, ali na íris reflectida. Assim se rouba o mundo, assim se leva nos bolsos, para casa, com a gente o que se vive. Assim se promete que um dia, mais ou menos azul, nos voltamos a ver.
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quinta-feira, abril 22

AS vozes e os silêncios na fotografia de Diamantino Gonçalves

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A escrita do Olhar
Um fotógrafo, Diamantino Gonçalves, a fotografar a Beira Interior. Ele afirma apenas: " A fotografia é a minha âncora, de geografias da memória, sentimentos, amizade e revolta..."
Nas fotografias de Diamantino Gonçalves não há espaços vazios. Está lá sempre, e sempre, essa originalidade de saber olhar e de dizer as coisas mesmo quando (aparentemente) a figura humana não figura na foto.
A actual reprodução excessiva de imagens produz-nos uma carência incurável, um "não querer ver mais". Esse acto de descoberta que era o "ver" tornou-se desnecessário. No entanto, as fotografias de Diamantino Gonçalves mantém uma força que lhe permite materializar aquilo que designamos por o efeito do real, mas uma fotografia é também uma testemunha , isto é, foi aquele fotógrafo, naquele preciso momento que disparou o obturador. O que retém a fotografia pela fixação? Detentora do seu próprio tempo e da sua própria matéria, a fotografia dá sentido a esse movimento perdido dos instantes, materializando o real, bem como o universo da imaginação.
Talvez nunca possamos deixar de caracterizar a fotografia como a arte que capta o tempo. Mas "representar" o real, exercer a capacidade de fixar as coisas, não pode ser indissociável do acto de "dizer" o real. Uma imagem fotográfica pode ser detentora de vários códigos que pedem uma explicação.
A máquina fotográfica de Diamantino Gonçalves é, sobretudo, uma questionação das coisas. Dianantino Gonçalves encontra na Beira Interior a sua geografia de afectos. Com a sua objectiva--fixa a memória e retrata uma região inevitávelmente ligada aos desígnios do tempo. As suas fotografias têm uma maneira de olhar . Têm também, uma maneira de dizer. Representar o real faz-nos reconhecer de imediato a objectividade e autenticidade do material documental fotográfico, mas dizer o "real" implica uma profunda reflexão sobre a imagem que se escolhe, a forma como se aborda um tema.

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A ordenação do olhar
Para além da função documental, a fotografia está também revestida de um valor emotivo que a torna um dos mais preciosos arquivos de vivências e memórias. Assim é a fotografia de Diamantino Gonçalves, fruto da consciência e do saber ver a imagem real daquilo que desejamos ter mas que brevemente deixamos de possuir.
Nas imagens escolhidas por este fotógrafo reconhecemos aldeias como o Açor ou a Póvoa da Atalaia, paisagens como a da campina da Idanha, ou a Cova da Beira ou o Pinhal. É com a luz do Beira que alimenta essa necessidade de fixar as coisas, melhor, de as arquivar em modo quase diarístico. A fotografia espelha assim simultaneamente uma relação de crítica e cumplicidade: cumplicidade com o próprio mundo, crítica ao processo de realização das obras num plano mental que antecede necessariamente qualquer fotografia. A capacidade de interrogar e problematizar a realidade expressam a dupla função de ‘espectáculo’ e ‘vigilância’ da fotografia, como já o referiu Susan Sontag, na medida em que o olhar do fotógrafo sobre o mundo é naturalmente diferente – um mundo em que tudo é passível de uma fruição estética. Nessa ordenação do mundo e do olhar, muito mais do que uma simples imitação das coisas reais, a fotografia de Diamantino Gonçalves é o recapturar os instantes da vida, como se rodasse um filme.


sábado, abril 17

"Ganhar no pavor"

O futebol brasileiro é uma fonte inesgotável e fascinante de exemplos de fanatismo clubista. Já se sabe que o futebol é, em todo o mundo, muito mais do que um desporto, mas esta verdade universal ganha no Brasil uma expressividade delirante. Tal como a sociedade brasileira também o seu futebol é marcado, para o bem e para o mal, pelo excesso, pelo barroco e pelo caos. Os pornográficos dirigentes desportivos portugueses, sempre disponíveis para serem actores de um espectáculo rasca e medíocre, parecem aqui uns ingénuos meninos de coro.
Um dos últimos exemplos do excesso brasileiro na sua vivência do futebol, que na maior parte das vezes dá origem a uma espécie de criatividade colectiva das massas que fascinaria Marx, deu-a a torcida do Corinthians. Clube de São Paulo, o «timão» é um dos clube mais míticos e ganhadores (apesar da sintomática crise financeira) do futebol brasileiro, e a sua falange de apoio uma das mais numerosas e fanáticas de todo o país. Enfraquecida pela fuga massiva dos seus melhores jogadores, a equipa dos alvi-negros fez uma campanha deplorável no campeonato paulista e chegou à última jornada do campeonato regular a precisar de ganhar para garantir a manutenção na primeira divisão. Apesar do cenário deprimente, ninguém acreditava que o grande clube paulista não alcança-se uma vitória sobre a Portuguesa Santista, pequeno clube do interior, e a torcida compareceu em grande número. Mas no futebol as camisolas não ganham jogos e o «timão» apenas conseguiu um decepcionante empate, sendo salvo, humilhação das humilhações, pelo arqui-rival São Paulo.
Esta humilhação foi a gota de água para os difíceis adeptos do Corinthians. No dia seguinte a torcida resolveu ir ao aeroporto «despedir-se» da equipa, que tinha um jogo para a taça a meio da semana. Trajados simbolicamente de palhaços, insultaram os jogadores de «pipoqueros» (leia-se, falta de atitude) e fizeram tiro ao boneco, com ovos devidamente preparados para o efeito, aos assustados jogadores. Diga-se, com assinalável sucesso. Mais tarde o gordo «metalero», um dos líderes da Gaviões da Fiel, a famosa claque do clube, explicou na televisão o porquê da atitude dos adeptos: «No Corinthians é assim. Se não ganham no amor, ganham no pavor!»
Eu sei que todas as etiquetas do politicamente correcto obrigam-me a repudiar este tipo de comportamento. Mas tenho que admitir que, maliciosamente, dei por mim a pensar que existem certos jogadores em Portugal que merecem um tratamento de choque à brasileira.

quinta-feira, abril 15

Sensibilidade e bom senso

Os camaradas e amigos do Através dos Espelhos, voltaram em força e talento. Leitura obrigatória, aconselho vivamente o texto Democracia no Iraque do Tiago, um exemplo notável de sobriedade, sensibilidade e bom senso em relação ao atoleiro iraquiano, mostrando a verdadeira fibra de um livre pensador, que não embarca em cantorias e espalhafatos irados, muito em voga em ambos os lados da barricada.
É seguramente, um dos mais sensatos textos que já vi escritos sobre o tema.
"Soprar borregos" é uma crónica do Vitor absolutamente imperdível, pela crueza humana e os afectos que carregam uma descrição despretensiosa de uma memória de Páscoa. Dá gosto ter o prazer de ter amigos como estes dois.

Num outro registo, muito próximo do "sexo na cidade", versão mais hardcore, a Rititi continua em grande nos seus diários: O período, as roupas, a sogra, o amor, os gaijos, as gaijas, naquele que é certamente um dos mais brilhantes blogues a parodiar a condição feminina. Tem tanta piada, que nem parece uma gaja, animal que como é do conhecimento público, é normalmente destituído da capacidade de produzir humor.
A vida a sério pelas coisas a brincar, a não perder.
Dá gosto ter o prazer de ter uma amiga assim.

PS: Para que não digam que o Pélé é só azedume e traulitada e incapaz de tecer elogios. Faço-o com moderação, que é a melhor forma dos valorizar.

Abracinhos, beijinhos e outras manifestações de afecto.

terça-feira, abril 13

Uma suecada pascal

Mesa para quatro. Copo três para todos.
Jorra o tinto novo no copo de vidro basso e nas goelas ressequidas pelo Sol prazenteiro de Abril.
A Gardunha recusa a sombra, que tenuemente se insinua com a forma esquálida das vides podadas de fresco na latada.
Pretas, ou vermelhas. Dá o meu Ti Zé Maria. Mão certeira e sabida a dar. Marca manilha de copas e dá à direita para o meu Avô Manel, a contra luz, já a piscar o olho. Distribui em leque mais dez para o Ti João, noventa anos e pai do Ti Zé Maria.
Velhote gingão de S. Vicente da Beira, músico da banda há 75 anos. Tocava caixa. Já enterrou três mulheres e anda de soslaio posto “na cachopa” do lar, moça de 70 e tal anos, já se vê.
Ti João, enfezado e pele engelhada vai escondendo o jogo na manápula. Está feliz, vê-se no brilho malandro dos olhos e no estalido alegre que faz o tinto a escorrer-lhe pela goela. Deve ter mão cheia de copas e áses à farta. Mas, mais importante do que isso, o sol está de aquecer a alma, e o vinho também. Faz pareceria com o seu filho e aprendiz na arte da sueca.
Tem noventa anos e está vivo. Pisco os olhos contra o Sol, só me saem duques e cenas tristes. Vai um trago de vinho novo, espumoso e forte, para esquecer
O meu avô lá meteu a unha no baralhar e trocou a divina ordem da sorte. Quem se mete com o destino aleatório das cartas, mete-se com um Deus implacável.
Olho para o meu avô à procura de um sinal. Carrega as sobrancelhas e fecha o semblante, dali também nada de bom vem à mão.
– A ver não levamos uma limpa ! – roga ao deus da fortuna o bom do Manel Vitorino, rapidamente convertido ao azar do baralho.
O meu Ti Zé Maria, sorri, e numa cortesia profissional de jogador batido – tranquiliza:
–Chita não levam, mas duas ninguém vos tira.
Olho para os rostos fechados, mas com aquela luz do Sol, lampeja um ar de garotos felizes. Olho para a quadra de paus, bato-a na mesa com convicção lenta, pisco os olhos do Sol e do vinho forte e novo, e sinto-me inundado de uma estranha felicidade, de uma paz de perdedor.
Este jogo da Sueca está irremediavelmente perdido, o que sobra é um amor filial derramado num terreiro beirão e a felicidade de estar vivo, tal como o Ti João.
Na Beira Baixa a sueca é muito mais do que um jogo de cartas.

Pergunta académica

Qual é a fronteira da legitimidade entre o terrorismo e a resistência ?

Cloro para os olhos, cagalhões à água

A pissina coberta do Fundão foi assolada por um mal muito comum em Portugal – a javardeira.
É pena que não haja um Jogos Olímpicos da Badalhoquice, para podermos arrebatar uma pázada de medalhas.
Já que a nadar não chegamos ao ouro, podia-se instituir os 50 metros arroto, os 100 metros do peido, os 200 metros da escarreta e as estafetas em caralhada, que iam ver os recordes olímpicos nestas dificeis disciplinas a tombarem que nem tordos.
Pobres autarcas que andam a gastar uma pipa de massa em cloro para os olhos dos eleitores e a prometerem oásis de esperança aquecida, vendo os seus altos designios e nobres intenções alvo da mais funesta carga de cagalhões.
Nas pissinas aquecidas do Fundão, andam cagalhões submarinos a perturbar a paz das braçadas fundenenses e o sono dos autarcas. Quanto a mim, trata-se do mais puro acto de terrorismo escatológico, certamente patrocinado pela oposição ou pelas forças anarquistas, que encontraram nas fezes, a arma química para semear o pânico nas hostes subitamente bracejantes e nos cristãos-novos da hidroginástica.
Não é de descurar o cenário mais conspirativo, que atribui a autoria moral dos atentados anais, a construtores civis despeitados pelo facto das piscinas aquecidas estarem a provocar um forte abalo nas vendas de condominios com piscina e jacuzzi interior.
O que sobra disto é que andam uns rufias incontinentes a lançar torpedos de merda nos pilares da política autárquica.
Como qualquer ataque terrorista, não se sabe de onde vem, nem a que horas vem, e por isso todos os sistemas de vigilância e policiamento do rectângulo azul se têm demonstrado insuficientes para detectar os “jihad`s” da farpola, para desespero do senhor vereador das pissinas, que num dramático apelo à população pediu que os cidadãos apontassem a dedo aos criminosos. Um apelo tão dramático como histórico, já que pela primeira vez nos “anais” do poder autárquico em Portugal, um vereador apelou à população para “bufar” a identidade do cagalhão desconhecido.
E assim vai a glória do mundo.

sexta-feira, abril 2

Absoluto Nojo

Este Governo perseguiu como perdigueiro endiabrado o Rendimento Mínimo Garantido. Alegadamente havia desvios, abusos e estímulo à subsidio-dependência. Favorecia os preguiçosos e os intrujas, e além disso era uma das bandeiras do antigo Governo socialista. Moveu por isso uma guerra punitiva ao Rendimento Mínimo Garantido, deixando em paz funesta as mais de 50 por cento das empresas portuguesas que não declaram lucros. Mais houvesse, a notícia das 200 mil a 1 milhão de pessoas com fome em Portugal seria suficiente para um terramoto político e para uma moção de censura a este Governo, à luz deste dois dados. A oposição anda a dormir e mais preocupada com as eternas rivalidades internas, porque afinal é outra face da mesma moeda.

O Nojo

Em Portugal 200 mil pessoas passam fome, numa estimativa optimista, que Bruto da Costa, respeitado investigador social, pensa poder ascender a 1 milhão de pessoas. Ouviram bem, um milhão de pessoas em Portugal pode passar fome.
O tema foi notícia no Público, que fez um dossier completo e brilhante sobre o tema. Já lá vão duas semanas. Depois disso umas peçazitas de merda nas televisões do costume, um ou dois comentadores mais colados à esquerda a espigarem-se numa indignação frouxa, um ou outro político a fazer uma referência de rodapé, e depois disso, o mais insuportável e indecoroso dos silêncios. Há silêncios que são crime de cumplicidade activa. A fome em Portugal é motivo de vergonha para todos, políticos, empresas que não declaram rendimentos e cidadãos. Há uma vergonha caladinha e incómoda que nps leva a olhar para o outro lado quando nos cruzamos com a mais básica das misérias humanas.
Sempre houve fome em Portugal, ainda há fome em Portugal.
Anda para aí escondida, caladinha e esquecida.
Não sei como se resolve o problema da fome, mas sei que não é metendo as mãos nos bolsos e assobiando para o ar. Alguém reparou se os partidos políticos, da oposição socialista, comunista ou bloquista levou este tema verdadeiramente a sério ? Se convocaram um debate de urgência na AR, se mostraram a sua indignação, se apresentaram projectos para a erradicação da fome? E o Governo, alguém escutou alguma promessa, alguma medida, algum sinal de esperança para quem tem de comer côdea e privar-se para suprir aos filhos. Eu não ouvi nem um pio.
Há muito que não ouvia um tão ensurdecedor e impúdíco silêncio.
Os partidos políticos portugueses, sem excepção, metem NOJO, NOJO.
Puta que os pariu a todos.

O Bloco

O bloquismo prospera no lodo da política portuguesa, precisamente porque se arroga numa espécie de formação anti-política, bactereologicamente pura. O bloquismo é um movimento que consegue capitalizar o descontentamento, e nessa acepção é a forma mais aproximada que muitos portugueses têm de votar em branco, sem precisarem de se demitir da sua escolha democrática. Votar no bloco é votar em branco, mas é consideravelmente mais perigoso do que votar mesmo em branco, porquês. As razões estão todas explicadinhas, e com base factual no editorial de José Manuel Fernandes hoje no Público. Têm a haver com o húmus ideológico do bloco, da sua matiz genética que se encontra entre o trotskismo e o leninismo não revisionista do PSR e da UDP. Está lá tudo explicado. Sob a capa de uma esquerda modernaça e "cool" respira um velho cadáver que teima em não exalar o derradeiro suspiro.
Prefiro a via do voto em branco do que passar a este grupúsculo do pseudo politicamente correcto um cheque em branco.

Ensaio sobre a falta de lucidez

Como era de prever a deliciosa provocação de Saramago atingiu cirurgicamente o alvo e causou danos colaterais. Ainda bem, despertou em espasmos a sociedade recreativa dos partidos políticos e seus subsidiários nos jornais, defendendo de unhas e dentes a partidocracia em que vivemos, sob o pretexto de estarem a defender a Democracia, que esse nobel estalinista quer mais uma vez destruir.
O cancro das modernas Democracias chama-se partidite aguda, cujo sintoma principal é a abstenão e o alheamento. É absolutamente esclarecedor que os partidos políticos portugueses tenham liminarmente chumbado a possibilidade de listas de independentes concorrerem às eleições autárquicas. Estalinismos por estalinismos, prefiro um de género literário.

Eu voto na branca, e tu?

Omo sapiens, lava mais branco.

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