segunda-feira, agosto 30
Toda a verdade sobre o Paralelo 40ºN.
Paralelo 40ºN, o Festival Que Refrescou Os Ares do Fundão
Por REPORTAGEM DE SANDRA INVÊNCIO (TEXTO)
Segunda-feira, 30 de Agosto de 2004
São pouco mais de uma dezena as pessoas que assistem, há cerca de cinco minutos no interior do antigo "wc" da desactivada estação ferroviária da Fatela, no concelho do Fundão, à primeira performance de Helena Botto. Apenas uma dezena de espectadores porque o espectáculo foi concebido para um público reduzido. E a lotação estava esgotada, na noite de sábado, com as cabeças da assistência em constante movimento, a tentarem furar por entre um grupo compacto que quer visualizar a performance da actriz do ACTO - Instituto de Arte Dramática. Lá dentro, Helena Botto interpreta um conjunto de textos de Al Berto, entre gritos e gemidos e, a certa altura, está mesmo a tocar o tecto.
"É tempo de simular a ressurreição", vai repetindo a actriz, em tom crescente. Com as costas apoiadas numa das paredes e os pés noutra lá vai trepando, até alcançar o tecto. A performance, intitulada "...de amor e de dor I...", avança e há cada vez mais público a chegar. Para os que não conseguiram um lugar no exíguo corredor, há a oportunidade de verem uma segunda versão do espectáculo mais tarde, lá para o final da noite, no exterior do edifício principal da estação. Será com o mesmo texto, com a mesma actriz, mas diferente, até porque o cenário será outro, completamente distinto... Daí que essa seja "...de amor e de dor II...". Mas antes há ainda muito para ver neste "Paralelo 40 º N", um festival multidisciplinar artístico organizado pela Câmara do Fundão.
Todas as instalações e divisões desta antiga estação, desactivada há dois anos, actualmente a funcionar como apeadeiro, aparecem ocupadas e com diferentes funcionalidades, ao serviço da arte contemporânea. A divisão situada logo à entrada do edifício principal é ainda de tamanho mais reduzido que o wc onde actua Helena Botto. Aqui, só caberão duas a três pessoas, no escuro, em "Dentro do Armário", onde está um pequeno ecrã que exibe outras performances que o ACTO gravou durante a residência artística que iniciou na estação no passado dia 16.
O Paralelo 40 º N tem por base a temática da viagem e as estórias que os 19 artistas ali reunidos colheram da população local. Está de tal forma ligado à Fatela que, diz o director do ACTO, Filipe Pereira, "levá-lo ao Algarve ou até mesmo ao Fundão não teria qualquer sentido". "Foi concebido exclusivamente para esta estação e só funciona aqui", sublinha. É todo ele "made in Fatela", desde a exposição multimedia numa das paredes das escadas que dão para o segundo piso do edifício, a outra exposição projectada numa das salas onde se visualiza o próprio autor, nu, em "Camuflagem", rodeado de folhas de figueira - colhidas lunto à linha de caminhos-de-ferro.
Para o ano há mais
Lá fora, junto à linha e na esplanada ali improvisada, sopram ares de jazz ao vivo. "Eu prefiro ranchos, mas estas modas também são bonitas", solta Salvador Dias, um espectador atento, de 64 anos. Apesar de uma boa parte dos visitantes do festival constituir público urbano, há bastante gente das freguesias limítrofes, para quem este evento multidisciplinar artístico aparece como uma novidade. "Uma boa novidade", enfatiza Dias.
E depois da primeira parte do café-concerto, a performance da noite: "Transfer", em instalações amplas, ao lado do edifício principal, com as primeiras filas da assistência a serem ocupadas por um público seguramente septuagenário, visivelmente pouco acostumado a este género de espectáculos. Lá vai largando umas gargalhadas, perante uma performance tão bem-humorada. Os quatro actores aproveitaram o que encontraram na estação para conceber o espectáculo, desde os mais variados utensílios das lides ferroviárias à papelada e documentação descoberta no meio do lixo. Brincam com aquelas mensagens tantas vezes ouvidas nas estações ferroviárias, aquelas de que às vezes apetece rir... "Pedimos desculpa pelos incómodos causados", vai repetindo um dos actores, provocando o riso aos restantes três. "E para mais informações consulte as nossas estações". E riem sem parar. Riem de tal forma de eventuais contratempos que terão ocorrido que contagiam o público...
Já depois da meia-noite, o Paralelo 40º N concentrou-se num público mais jovem, com uma sessão de Dj's. Concorrência DJ & Guests e Isabel Paiva VJ animaram a noite até às 7h25, altura em que o público foi convidado a ir até ao Fundão de comboio, o primeiro da manhã.
Para o ano, o festival promete ser mais arrojado. Luís Filipe Pereira, do ACTO, pretende um programa que englobe outras estações desactivadas do concelho (mais cinco) e já antevê uma locomotiva ao serviço do Paralelo 40º N, que possa transportar o público de espectáculo em espectáculo.
in Público 30 de Agosto de 2004
Épa, isto não foi bem asshim...
O psshoal tava a curtire, e acabou tudo à bulha às quatro da matina.
O comboio até passou, mas já tinhamoje sshido cumbidádos a sshair do rechinto.
Por REPORTAGEM DE SANDRA INVÊNCIO (TEXTO)
Segunda-feira, 30 de Agosto de 2004
São pouco mais de uma dezena as pessoas que assistem, há cerca de cinco minutos no interior do antigo "wc" da desactivada estação ferroviária da Fatela, no concelho do Fundão, à primeira performance de Helena Botto. Apenas uma dezena de espectadores porque o espectáculo foi concebido para um público reduzido. E a lotação estava esgotada, na noite de sábado, com as cabeças da assistência em constante movimento, a tentarem furar por entre um grupo compacto que quer visualizar a performance da actriz do ACTO - Instituto de Arte Dramática. Lá dentro, Helena Botto interpreta um conjunto de textos de Al Berto, entre gritos e gemidos e, a certa altura, está mesmo a tocar o tecto.
"É tempo de simular a ressurreição", vai repetindo a actriz, em tom crescente. Com as costas apoiadas numa das paredes e os pés noutra lá vai trepando, até alcançar o tecto. A performance, intitulada "...de amor e de dor I...", avança e há cada vez mais público a chegar. Para os que não conseguiram um lugar no exíguo corredor, há a oportunidade de verem uma segunda versão do espectáculo mais tarde, lá para o final da noite, no exterior do edifício principal da estação. Será com o mesmo texto, com a mesma actriz, mas diferente, até porque o cenário será outro, completamente distinto... Daí que essa seja "...de amor e de dor II...". Mas antes há ainda muito para ver neste "Paralelo 40 º N", um festival multidisciplinar artístico organizado pela Câmara do Fundão.
Todas as instalações e divisões desta antiga estação, desactivada há dois anos, actualmente a funcionar como apeadeiro, aparecem ocupadas e com diferentes funcionalidades, ao serviço da arte contemporânea. A divisão situada logo à entrada do edifício principal é ainda de tamanho mais reduzido que o wc onde actua Helena Botto. Aqui, só caberão duas a três pessoas, no escuro, em "Dentro do Armário", onde está um pequeno ecrã que exibe outras performances que o ACTO gravou durante a residência artística que iniciou na estação no passado dia 16.
O Paralelo 40 º N tem por base a temática da viagem e as estórias que os 19 artistas ali reunidos colheram da população local. Está de tal forma ligado à Fatela que, diz o director do ACTO, Filipe Pereira, "levá-lo ao Algarve ou até mesmo ao Fundão não teria qualquer sentido". "Foi concebido exclusivamente para esta estação e só funciona aqui", sublinha. É todo ele "made in Fatela", desde a exposição multimedia numa das paredes das escadas que dão para o segundo piso do edifício, a outra exposição projectada numa das salas onde se visualiza o próprio autor, nu, em "Camuflagem", rodeado de folhas de figueira - colhidas lunto à linha de caminhos-de-ferro.
Para o ano há mais
Lá fora, junto à linha e na esplanada ali improvisada, sopram ares de jazz ao vivo. "Eu prefiro ranchos, mas estas modas também são bonitas", solta Salvador Dias, um espectador atento, de 64 anos. Apesar de uma boa parte dos visitantes do festival constituir público urbano, há bastante gente das freguesias limítrofes, para quem este evento multidisciplinar artístico aparece como uma novidade. "Uma boa novidade", enfatiza Dias.
E depois da primeira parte do café-concerto, a performance da noite: "Transfer", em instalações amplas, ao lado do edifício principal, com as primeiras filas da assistência a serem ocupadas por um público seguramente septuagenário, visivelmente pouco acostumado a este género de espectáculos. Lá vai largando umas gargalhadas, perante uma performance tão bem-humorada. Os quatro actores aproveitaram o que encontraram na estação para conceber o espectáculo, desde os mais variados utensílios das lides ferroviárias à papelada e documentação descoberta no meio do lixo. Brincam com aquelas mensagens tantas vezes ouvidas nas estações ferroviárias, aquelas de que às vezes apetece rir... "Pedimos desculpa pelos incómodos causados", vai repetindo um dos actores, provocando o riso aos restantes três. "E para mais informações consulte as nossas estações". E riem sem parar. Riem de tal forma de eventuais contratempos que terão ocorrido que contagiam o público...
Já depois da meia-noite, o Paralelo 40º N concentrou-se num público mais jovem, com uma sessão de Dj's. Concorrência DJ & Guests e Isabel Paiva VJ animaram a noite até às 7h25, altura em que o público foi convidado a ir até ao Fundão de comboio, o primeiro da manhã.
Para o ano, o festival promete ser mais arrojado. Luís Filipe Pereira, do ACTO, pretende um programa que englobe outras estações desactivadas do concelho (mais cinco) e já antevê uma locomotiva ao serviço do Paralelo 40º N, que possa transportar o público de espectáculo em espectáculo.
in Público 30 de Agosto de 2004
Épa, isto não foi bem asshim...
O psshoal tava a curtire, e acabou tudo à bulha às quatro da matina.
O comboio até passou, mas já tinhamoje sshido cumbidádos a sshair do rechinto.
domingo, agosto 29
O golpe, ((ou: a confissão pública) (ou ainda: paga o justo pelo pecador) (ou ainda: Paralelo 40))
Antes de mais: sou designer e produtor de música electrónica e não tenho quaisquer pretensões de subir a um palco como actor ou "performer". Até porque, a meu ver, o teatro e a "performance" são das mais desprezíveis formas de comunicação e expressão. Há maior contradição do que a apredizagem da espontaneeadade? Há maior engano do que aprender a enganar e, ainda por cima, ao vivo (que lata)? Para eles não me partirem os dentes e tentando manter um crítica construtiva eu chamo-lhe um curioso paradoxo.
Não resisto a comentar a minha fantástica noite na estação de caminhos de ferro da Freguesia da Fatela.
Podia dizer que não foi muito boa ideia lá ter ido, mas a verdade é que acabei de vez com todas as minhas dúvidas em relação ao profissionalismo dos participantes deste acto (neste grupo me incluo).
Primeira dica: "Se fizeres alguma coisa com esses, não ponhas no portfolio porque assim não trabalharás mais para teatro no Porto e mesmo em Lisboa..." adaptação minha, até ao que a memória me permite.
Primeira impressão: Convidaram um tipo e mais dois amigos para lá ir tocar um "jazz". (Assim uma cena para criar bom ambiente durante...). -Epá, o meu orçamento só dá para vos dar 15 contos a cada um. - disse o dono daquilo sabendo que a banda era um trio. -Hmmm... - responderam os três quase em uníssono. Tinham concordado entre eles que só fariam o seu número pelo dobro. Infelizmente o teatro é uma arte (sei que por um triz não é crime) e, como artistas, poderiam desvelar um esboço de apreço por outras artes. Disse eu: -Ou entram numa de regional porreirismo e vem cá tocar na boa ou fazem valer os melhores interesses da vossa profissão e sobem-lhes a fasquia.
Pesaram os dados: apesar dos tipos precisarem deles, quem produziria e financiaria todo o projecto seria a Câmara Municipal (pelo menos não seriam roubados e, se fossem, existiriam moradas e telefones), o bar seria explorado pela única danceteria da terra não existindo desse modo uma outra promessa de actividade nocturna nesse fim de semana. Fizeram dois concertos de uma hora cada e ainda convidaram um músico para tocar baixo (sem incremento dos custos para a produção do festival) preocupados com a qualidade do acto. Não lhes deram jantar e tiveram de lá estar pela hora do início da digestão. Abençoados moços.
A minha experiência com actores não foi das melhores, como já se deve notar.
Outras impressões:
Todas as expressões ou termos que utilizarei no próximo parágrafo que estiverem contidas entre aspas transportam fortíssimas cargas de ironia e de dúvida:
Além desses concertos houve outros, houve exposições de "fotografia documental" a cair para o tão presente "momento Kodac", houve objectos ferrujentos espalhados pelo espaço exterior nos quais tropecei duas ou três vezes, houve uma "instalação" num casebre em ruínas feita com sepos podres, um espelho, uma moldura e umas fotocópias espalhadas pelo chão, vi uma "performance" numa casa de banho ("nunca tinha visto tal coisa!" / visceral como se quer... / um passeio pelo Conde Ferreira, só numa de observar os verdadeiros, não fazia mal a quem gosta de simular loucuras), vi uma que me surpreendeu, apesar das gastas referências bíblicas, das quais nem me apercebi. Só não fui dar os parabéns ao artista porque também nunca felicitei os meus professores por me ensinarem.
Apesar de tudo o que não me estimulava, sentia um ar rústico estranhamente sofisticado que me fez entrar na festa. Não sei se foi das folhas de figueira e do projector de vídeo, que felizmente ainda por lá ficou, ou se foi dos temas break-beat, industriais do Paulinho, ou dos temas techno, acid da Concorrência. Provavelmente foi dos gin-tónicos do bar do English Club e da constante sensação de anfitrião.
Até aqui tudo bem...
O tudo Mal: não comento.
Agradecimentos: Malvado pelo convite para me lerem, Ana por continuares sem me falar, Concorrência pelo convite para tocar contigo esta noite, English Club pelas três cervejas, Luís e Joana pela boleia, Lipe pelo teu charme, Binito pelo litro de Ice-Tea que agora vou beber, A Todos Os Amigos que me falaram mesmo depois de eu ter passado o Summer Jam 03 e ou outro tema EuroDance.
Não resisto a comentar a minha fantástica noite na estação de caminhos de ferro da Freguesia da Fatela.
Podia dizer que não foi muito boa ideia lá ter ido, mas a verdade é que acabei de vez com todas as minhas dúvidas em relação ao profissionalismo dos participantes deste acto (neste grupo me incluo).
Primeira dica: "Se fizeres alguma coisa com esses, não ponhas no portfolio porque assim não trabalharás mais para teatro no Porto e mesmo em Lisboa..." adaptação minha, até ao que a memória me permite.
Primeira impressão: Convidaram um tipo e mais dois amigos para lá ir tocar um "jazz". (Assim uma cena para criar bom ambiente durante...). -Epá, o meu orçamento só dá para vos dar 15 contos a cada um. - disse o dono daquilo sabendo que a banda era um trio. -Hmmm... - responderam os três quase em uníssono. Tinham concordado entre eles que só fariam o seu número pelo dobro. Infelizmente o teatro é uma arte (sei que por um triz não é crime) e, como artistas, poderiam desvelar um esboço de apreço por outras artes. Disse eu: -Ou entram numa de regional porreirismo e vem cá tocar na boa ou fazem valer os melhores interesses da vossa profissão e sobem-lhes a fasquia.
Pesaram os dados: apesar dos tipos precisarem deles, quem produziria e financiaria todo o projecto seria a Câmara Municipal (pelo menos não seriam roubados e, se fossem, existiriam moradas e telefones), o bar seria explorado pela única danceteria da terra não existindo desse modo uma outra promessa de actividade nocturna nesse fim de semana. Fizeram dois concertos de uma hora cada e ainda convidaram um músico para tocar baixo (sem incremento dos custos para a produção do festival) preocupados com a qualidade do acto. Não lhes deram jantar e tiveram de lá estar pela hora do início da digestão. Abençoados moços.
A minha experiência com actores não foi das melhores, como já se deve notar.
Outras impressões:
Todas as expressões ou termos que utilizarei no próximo parágrafo que estiverem contidas entre aspas transportam fortíssimas cargas de ironia e de dúvida:
Além desses concertos houve outros, houve exposições de "fotografia documental" a cair para o tão presente "momento Kodac", houve objectos ferrujentos espalhados pelo espaço exterior nos quais tropecei duas ou três vezes, houve uma "instalação" num casebre em ruínas feita com sepos podres, um espelho, uma moldura e umas fotocópias espalhadas pelo chão, vi uma "performance" numa casa de banho ("nunca tinha visto tal coisa!" / visceral como se quer... / um passeio pelo Conde Ferreira, só numa de observar os verdadeiros, não fazia mal a quem gosta de simular loucuras), vi uma que me surpreendeu, apesar das gastas referências bíblicas, das quais nem me apercebi. Só não fui dar os parabéns ao artista porque também nunca felicitei os meus professores por me ensinarem.
Apesar de tudo o que não me estimulava, sentia um ar rústico estranhamente sofisticado que me fez entrar na festa. Não sei se foi das folhas de figueira e do projector de vídeo, que felizmente ainda por lá ficou, ou se foi dos temas break-beat, industriais do Paulinho, ou dos temas techno, acid da Concorrência. Provavelmente foi dos gin-tónicos do bar do English Club e da constante sensação de anfitrião.
Até aqui tudo bem...
O tudo Mal: não comento.
Agradecimentos: Malvado pelo convite para me lerem, Ana por continuares sem me falar, Concorrência pelo convite para tocar contigo esta noite, English Club pelas três cervejas, Luís e Joana pela boleia, Lipe pelo teu charme, Binito pelo litro de Ice-Tea que agora vou beber, A Todos Os Amigos que me falaram mesmo depois de eu ter passado o Summer Jam 03 e ou outro tema EuroDance.
segunda-feira, agosto 23
Ciau Portocallo
O domador de borboletas, embalado pelo som da flauta, conduziu as crianças para o precipicio.
Pelos tuneis cavados na rocha de calcario espalhava-se o reflexo tenue de Venus.
Do outro lado era o mar, e pelo mar voltariam a casa.
Abraços mediterranicos para todos
Pelos tuneis cavados na rocha de calcario espalhava-se o reflexo tenue de Venus.
Do outro lado era o mar, e pelo mar voltariam a casa.
Abraços mediterranicos para todos
Por outras palavras
Fanega.
Ou a síntese de uma semana no sopé da Gardunha.
Ou a síntese de uma semana no sopé da Gardunha.
segunda-feira, agosto 16
2 Alpedradas
TRANSUMANCIA
Rua acima rua abaixo; Rua acima rua abaixo
É calçada que não cança. É folclore e dança.
Rua acima rua abaixo; Rua acima rua abaixo
Empadas e rissois, sardinhas e caracois,
Rua acima rua abaixo; Rua acima rua abaixo
Vinho e jeropiga, cerveja e ginginha.
Rua acima rua abaixo; Rua acima rua abaixo
Visitantes e artesãos convivem...dão as mãos.
Rua acima rua abaixo; Rua acima rua abaixo
Vale a pena e é bem feito, deixas saudades Alpedrinha...
Mesmo do fundo do peito.
Xano
A canção de ALPEDRINHA
Quando nasceste Alpedrinha,
Veio o sol ao batizado,
A lua tua madrinha,
Deu-te um manto prateado,
O rouxinol a canção,
a água deu-te o perfume,
filha do meu coração,
Mais ardente do que o lume...
Cantai cantai é beleza sem igual,
Terra mais linda não existe em Portugal,
Sintra da Beira junto á Gardunha encostada,
Eu te saúdo Alpedrinha abençoada.
Dr José Bento Monteiro (Alpeterniense)
Rua acima rua abaixo; Rua acima rua abaixo
É calçada que não cança. É folclore e dança.
Rua acima rua abaixo; Rua acima rua abaixo
Empadas e rissois, sardinhas e caracois,
Rua acima rua abaixo; Rua acima rua abaixo
Vinho e jeropiga, cerveja e ginginha.
Rua acima rua abaixo; Rua acima rua abaixo
Visitantes e artesãos convivem...dão as mãos.
Rua acima rua abaixo; Rua acima rua abaixo
Vale a pena e é bem feito, deixas saudades Alpedrinha...
Mesmo do fundo do peito.
Xano
A canção de ALPEDRINHA
Quando nasceste Alpedrinha,
Veio o sol ao batizado,
A lua tua madrinha,
Deu-te um manto prateado,
O rouxinol a canção,
a água deu-te o perfume,
filha do meu coração,
Mais ardente do que o lume...
Cantai cantai é beleza sem igual,
Terra mais linda não existe em Portugal,
Sintra da Beira junto á Gardunha encostada,
Eu te saúdo Alpedrinha abençoada.
Dr José Bento Monteiro (Alpeterniense)
sexta-feira, agosto 13
Méééé! Méééé! A minha ovelha é mais culta do que a tua
"A cultura é indigesta, é por isso que se arrotam postas de bacalhau e se mandam peidos eruditos".
Autor anónimo
Legenda: Ovelha intelectual do Fundão, bebericando um caneco num bar local, enquanto discute com as amigas a importância do Grande Cisma do Ocidente para a emancipação das ovelhas bizantinas e a contribuição das experiências sodomitas com animais para uma mais clara visão da arte
Já soam os balidos e já cheira a carneirum.
É o maior e mais estimulante evento cultural à Beira da Cova que se aproxima a trote.
Falo claro está do Festival da Transumância, que durante uma semana vai colocar a altiva Alpedrinha no centro do mapa-mundi, ofuscando por completo as proezas trogloditas dos super-homens da nandralona de Atenas. São esperadas milhares de ovelhas que anualmente rumam à Meca da Transumância, para uma semana de delírio bestial que dá um forte sinal da pujança criativa e artistica da Beira.
Para quem duvida da massa cinzenta e do potencial artístico dos beirões, as centenas de ovelhas que participam nos desfiles com graciosas coreografias e uma propensão inegável para liderar o movimento de vanguarda da arte escatológica, são essas ovelhas que dão a resposta.
Este ano, uma coreografia de tosquiadores de ovelhas colocará em confronto os super-favoritos australianos bêbados, com uma equipa local, fortemente experimentada na arte de tosquiar os políticos lá da terra e que se inscreve com o sugestivo nome de “Cultura não é Sopas!”.
Mas o ponto alto do festival ovídeo é mesmo o concurso de esculturas escatológicas.
O Metropolitan Museum of New York vai enviar um observador, na esperança de adquirir a preço de saldo uma cagadela surrealista, ornamentada a caganitas de uma qualquer ovelha-escultora.
Outro dos pontos altos do cartaz do festival é a exibição da peça “O Pastor sodomita”, da autoria de António Artaud, encenada pelo famoso pilha-galinhas, Zeca da Fruta, natural da Orca, e que foi condenado a 3 anos de prisão por abuso sexual de galináceos e ovídeos. A companhia é a mais conceituada da região – a do Estabelecimento Prisional da Covilhã – mundialmente famosa por ter subvertido o método Stanislavski, que ao contrário do que a maior parte das pessoas julgam não é o nome de uma marca de vodka, mas sim de um célebre torturador da escola “gulag”.
Para todos nós que cagamos de alto para a arte e a cultura, vai ser refrescante ter finalmente a oportunidade de assistir a um grandioso espectáculo que colocará todos os pretensos artistas locais na sua escala real – a de insignes caganitas.
Como dizia o Gil Vicente saramicas de cagamerdeira, para acabar de vez com a cultura da carneirada ululante.
Espero que os artistas locais tenham a humildade de se deslocar a Alpedrinha e aprender algo com as ovelhas – ou seja a balir e a cagar – duas formas de arte infinitamente superiores áquelas que eles alegadamente praticam.
Autor anónimo
Legenda: Ovelha intelectual do Fundão, bebericando um caneco num bar local, enquanto discute com as amigas a importância do Grande Cisma do Ocidente para a emancipação das ovelhas bizantinas e a contribuição das experiências sodomitas com animais para uma mais clara visão da arte
Já soam os balidos e já cheira a carneirum.
É o maior e mais estimulante evento cultural à Beira da Cova que se aproxima a trote.
Falo claro está do Festival da Transumância, que durante uma semana vai colocar a altiva Alpedrinha no centro do mapa-mundi, ofuscando por completo as proezas trogloditas dos super-homens da nandralona de Atenas. São esperadas milhares de ovelhas que anualmente rumam à Meca da Transumância, para uma semana de delírio bestial que dá um forte sinal da pujança criativa e artistica da Beira.
Para quem duvida da massa cinzenta e do potencial artístico dos beirões, as centenas de ovelhas que participam nos desfiles com graciosas coreografias e uma propensão inegável para liderar o movimento de vanguarda da arte escatológica, são essas ovelhas que dão a resposta.
Este ano, uma coreografia de tosquiadores de ovelhas colocará em confronto os super-favoritos australianos bêbados, com uma equipa local, fortemente experimentada na arte de tosquiar os políticos lá da terra e que se inscreve com o sugestivo nome de “Cultura não é Sopas!”.
Mas o ponto alto do festival ovídeo é mesmo o concurso de esculturas escatológicas.
O Metropolitan Museum of New York vai enviar um observador, na esperança de adquirir a preço de saldo uma cagadela surrealista, ornamentada a caganitas de uma qualquer ovelha-escultora.
Outro dos pontos altos do cartaz do festival é a exibição da peça “O Pastor sodomita”, da autoria de António Artaud, encenada pelo famoso pilha-galinhas, Zeca da Fruta, natural da Orca, e que foi condenado a 3 anos de prisão por abuso sexual de galináceos e ovídeos. A companhia é a mais conceituada da região – a do Estabelecimento Prisional da Covilhã – mundialmente famosa por ter subvertido o método Stanislavski, que ao contrário do que a maior parte das pessoas julgam não é o nome de uma marca de vodka, mas sim de um célebre torturador da escola “gulag”.
Para todos nós que cagamos de alto para a arte e a cultura, vai ser refrescante ter finalmente a oportunidade de assistir a um grandioso espectáculo que colocará todos os pretensos artistas locais na sua escala real – a de insignes caganitas.
Como dizia o Gil Vicente saramicas de cagamerdeira, para acabar de vez com a cultura da carneirada ululante.
Espero que os artistas locais tenham a humildade de se deslocar a Alpedrinha e aprender algo com as ovelhas – ou seja a balir e a cagar – duas formas de arte infinitamente superiores áquelas que eles alegadamente praticam.
quarta-feira, agosto 11
O dia em que traíram Manuel Vitorino
Para memória futura
“Uivemos disse o cão”
Livro das Vozes
Manuel Vitorino põe a bóina domingueira e veste o seu melhor fato.
Mete à estrada os seus sapatos envernizados.
Os pés doem-lhe, mas em passada firme, este velho e duro lavrador da Beira Baixa sobe a encosta da Gardunha com uma firme vontade.
Vestindo nas rugas um semblante resoluto, caminha com a mesma energia vital como sempre o fez quando era novo, galgando quilómetros até Alpedrinha, onde ia buscar o pão e iguarias aos seus patrões, os latifundiários senhores das terras baixas de Castelo Novo.
Ainda moço, de revólver no bolso, que o tempo era de sombras e a berma covil de salteadores (há tempos que voltam), Manuel Vitorino cumpria os 4 quilómetros até Alpedrinha com um estranho sentido de dever, que só a necessidade e a surda resignação instiga.
Os sapatos naquele tempo eram a planta dos pés enrugadas e calejadas pela terra e pela pedra aguçada e cortante.
Manuel Vitorino era filho de gente pobre dos Escalos de Cima, que migrara para a quinta dos senhores Caldeira, escudada no anfiteatro protector e de fertilidade árdua da Gardunha.
Deixaram a terra em que foram paridos com vagidos esfomeados em busca de côdea mais farta.
Se é que a côdea alguma vez pode ser farta.
Manuel Vitorino é irmão-pai de sete irmãos.
O seu pai perdeu-se na amargura do bagaço e na morte lenta do trabalho de montar carris, de montar via férrea. Labuta que mói e que mata.
Sobrou Rosário, mãe-coragem e oito filhos. Rosário que sustentava a prol com esse bem raro nos Escalos dos anos 30 – Saber ler e escrever.
Era ela que lia às velhas as cartas dos filhos emigrados na França ou em andanças para o Brasil.
Em troca da saudade distribuída por via postal recebia o pão as azeitonas e o alqueire de azeite, com que enganava a fome da prol.
Pagou com trabalho e sofrimento a caligrafia ornamentada e quase monástica do seu primogénito, Manuel Vitorino e dos restantes sete filhos.
Manuel Vitorino nunca foi menino.
Nasceu descalço e viveu descalço, obrigado a ser homem.
Os primeiros sapatos calçou-os aos 18 anos, já gastos e de remendão. Eram a sua farda juntamente com o revólver, que o capataz da Quinta dos Caldeira lhe deu para ser guarda da propriedade.
Foi criado na obediência cega da sobrevivência, calou revoltas, amordaçou raivas e injustiças. Cumpriu de bóina na mão as ordens do capataz, do senhor, do Estado e da Santa Igreja.
Obedeceu abafando a ira, mordendo os lábios num grito que ressoava nas vísceras – Filhos da Puta !
Manuel Vitorino casou e procriou. Trocou as botas cardadas de pastor, pelas botas bem engraxadas e rudes da companhia dos caminhos-de-ferro, com quem também celebrou laços conjugais para a vida.
Para 40 anos de matrimónio, feito de esperanças, traições e sofrimento.
Na CP, Manuel Vitorino ganhou mais um quinhão de liberdade, esse pão fresco e delicioso que sacia.
Mas apenas e só um quinhão desse pão grande e perfumado, um quinhão conquistado em noites frias ao relento, aquecendo-se na cálida camaradagem das fogueiras e do vinho carrascão, dando luz e orientação aos comboios como os velhos faroleiros faziam aos barcos.
Uma vida entregue à dureza da via, aos sortilégios da Companhia, a ver passar comboios, a fazer passar os comboios. E, mais uma vez, como sob as noites estreladas da Quinta dos Caldeira, calando revoltas, contendo recusas, domando a dignidade, cavando bem fundo a angústia que se espalha como cancro maligno.
Pela sobrevivência.
Sempre essa batalha pela sobrevivência, sua e das três filhas que criava a custo, querendo para elas mais do que a caligrafia ornamentada e vazia que de nada lhe servia com a enxada ou nas manobras da via.
No Portugal amordaçado e em surdina apenas não se consegue calar aquele brilho perigoso e mágico no olhar. Uma chispa cintilante e ressentida. No Portugal de mansinho apenas não se consegue silenciar o som da passada forte e cadenciada, como se cada passo fosse um gesto, uma marcha de liberdade.
Como se calcando a terra com a bota guardada a sebo e aferrolhada com protectores metálicos e estridentes, como se assim se gritasse liberdade.
Pode vergar-se um homem, mas nunca quebrar um olhar livre e uma passada vigorosa; com o vigor que só a raiva contida dá.
Manuel Vitorino continuou a marchar pela vida, a marchar até ao dia em que pela primeira vez, calçou os seus sapatos domingueiros, impecavelmente engraxados, vestiu o seu fato coçado de casamentos e funerais e tapou a melena rebelde com a bóina, outrora serviçal, agora alegre e jovial.
Doem-lhe os pés, mas Manuel Vitorino dá corda aos sapatos e ataca a subida da encosta da Gardunha.
Da sua quinta na planície até à Casa do Povo de Castelo Novo, serra acima, Manuel Vitorino marcha com a mesma determinação e o mesmo brilho no olhar com que fazia no tempo de todas as ditaduras – as grandes e as pequenas -, mas agora fá-lo abertamente, livremente.
Manuel Vitorino vai votar.
Vai pela primeira vez contar, ter voz. Vai poder escolher, participar, concordar, discordar, eleger.
Vai pela primeira vez juntar a voz, o olhar e a passada num só acto de consciência.
Vai poder saborear o pão da liberdade e cuspir o azedume rançoso de uma vida feita de obediências e humilhações.
Foi assim pela primeira vez, e foi assim sempre.
Desde o dia 25 de Abril de 1974, Manuel Vitorino, 76 anos, ferroviário reformado, lavrador rijo e homem duro, caligrafia ornamentada e ufana, olhar com o brilho límpido da liberdade, homem tão bom como outro qualquer e tão humano como todos os outros.
Desde esse dia de intensa claridade que Manuel Vitorino faz seis quilómetros a pé, com os seus sapatos engraxados, apertando-lhe os calos, sob o calor tórrido dos agostos ou o taró dos dezembros.
Desde esse dia que Manuel Vitorino vai votar. Para tudo, legislativas, autárquicas, presidenciais, europeias, referendos.
Não faltou a uma …
Manuel Vitorino costuma dizer “Um gajo andou quarenta anos com os cornos baixos e a bóina na mão. Já chega!”.
É neste "já chega" que se resume o valor da Democracia e da participação.
Para se saborear o pão da liberdade, nada como ter a memória amarga da privação.
De todos os livros, de todos os autores, de todas as filosofias, de todas artes, ninguém me soube, como ele, explicar a liberdade e a beleza magnífica da Democracia.
A soma de todas as partes, de todas as vontades (ainda que contraditórias), mas que na essência se resumem a um acto único de consciência e de poder. O poder decidir uma ínfima parte do nosso destino colectivo e como homens singulares.
É saber que todos, independentemente da nossa condição, raça, credo, da nossa caligrafia, dos nossos sapatos, da nossa passada; é saber que todos somos um, e todos somos iguais.
Todos contamos, todos marchamos pela liberdade.
Foi isso que um homem do campo com a quarta classe, uma caligrafia estudada de mestre-escola e uma passada firme e resoluta me ensinou.
É esse o legado de Manuel Vitorino, o meu avô.
É esse legado e profundo amor pela liberdade que foi traído no mês de Julho de 2004.
Foi traído pelo Dr. José Manuel Durão Barroso, pelo Dr. Santana Lopes, pelos 109 conselheiros do Partido Social Democrata, pelo Dr. Paulo Portas, pela matilha obediente e amansada dos jornalistas e comentadores de joelho gasto pela genuflexão e, por último, foi traído pelo Dr. Jorge Sampaio.
A todos eles ofereço os sapatos envernizados do meu Avô Manuel Vitorino.
O homem que durante uma vida marchou em surdina pela liberdade.
Pelos vistos não vai precisar deles, num país onde liberdade e Democracia são apenas histórias que os avós contam aos netinhos.
A eles os sapatos envernizados do meu avô, homem honrado e traído por uma corja de miseráveis engraxadores.
Guardem os sapatos, que a voz de Manuel Vitorino fica comigo para dizer “Já Chega”.
Avô Manel eu não me calarei, porque nem que seja uma só voz. Ela conta.
Não deixarei trair-me pela memória ou pela falta dela, nunca esquecerei esse dia negro em que a liberdade foi calcada pelos finos sapatos italianos dos políticos portugueses.
Os novos bastardos do poder terão em mim o mais dedicado cão-de-fila.
“Uivemos disse o cão”
Livro das Vozes
“Uivemos disse o cão”
Livro das Vozes
Manuel Vitorino põe a bóina domingueira e veste o seu melhor fato.
Mete à estrada os seus sapatos envernizados.
Os pés doem-lhe, mas em passada firme, este velho e duro lavrador da Beira Baixa sobe a encosta da Gardunha com uma firme vontade.
Vestindo nas rugas um semblante resoluto, caminha com a mesma energia vital como sempre o fez quando era novo, galgando quilómetros até Alpedrinha, onde ia buscar o pão e iguarias aos seus patrões, os latifundiários senhores das terras baixas de Castelo Novo.
Ainda moço, de revólver no bolso, que o tempo era de sombras e a berma covil de salteadores (há tempos que voltam), Manuel Vitorino cumpria os 4 quilómetros até Alpedrinha com um estranho sentido de dever, que só a necessidade e a surda resignação instiga.
Os sapatos naquele tempo eram a planta dos pés enrugadas e calejadas pela terra e pela pedra aguçada e cortante.
Manuel Vitorino era filho de gente pobre dos Escalos de Cima, que migrara para a quinta dos senhores Caldeira, escudada no anfiteatro protector e de fertilidade árdua da Gardunha.
Deixaram a terra em que foram paridos com vagidos esfomeados em busca de côdea mais farta.
Se é que a côdea alguma vez pode ser farta.
Manuel Vitorino é irmão-pai de sete irmãos.
O seu pai perdeu-se na amargura do bagaço e na morte lenta do trabalho de montar carris, de montar via férrea. Labuta que mói e que mata.
Sobrou Rosário, mãe-coragem e oito filhos. Rosário que sustentava a prol com esse bem raro nos Escalos dos anos 30 – Saber ler e escrever.
Era ela que lia às velhas as cartas dos filhos emigrados na França ou em andanças para o Brasil.
Em troca da saudade distribuída por via postal recebia o pão as azeitonas e o alqueire de azeite, com que enganava a fome da prol.
Pagou com trabalho e sofrimento a caligrafia ornamentada e quase monástica do seu primogénito, Manuel Vitorino e dos restantes sete filhos.
Manuel Vitorino nunca foi menino.
Nasceu descalço e viveu descalço, obrigado a ser homem.
Os primeiros sapatos calçou-os aos 18 anos, já gastos e de remendão. Eram a sua farda juntamente com o revólver, que o capataz da Quinta dos Caldeira lhe deu para ser guarda da propriedade.
Foi criado na obediência cega da sobrevivência, calou revoltas, amordaçou raivas e injustiças. Cumpriu de bóina na mão as ordens do capataz, do senhor, do Estado e da Santa Igreja.
Obedeceu abafando a ira, mordendo os lábios num grito que ressoava nas vísceras – Filhos da Puta !
Manuel Vitorino casou e procriou. Trocou as botas cardadas de pastor, pelas botas bem engraxadas e rudes da companhia dos caminhos-de-ferro, com quem também celebrou laços conjugais para a vida.
Para 40 anos de matrimónio, feito de esperanças, traições e sofrimento.
Na CP, Manuel Vitorino ganhou mais um quinhão de liberdade, esse pão fresco e delicioso que sacia.
Mas apenas e só um quinhão desse pão grande e perfumado, um quinhão conquistado em noites frias ao relento, aquecendo-se na cálida camaradagem das fogueiras e do vinho carrascão, dando luz e orientação aos comboios como os velhos faroleiros faziam aos barcos.
Uma vida entregue à dureza da via, aos sortilégios da Companhia, a ver passar comboios, a fazer passar os comboios. E, mais uma vez, como sob as noites estreladas da Quinta dos Caldeira, calando revoltas, contendo recusas, domando a dignidade, cavando bem fundo a angústia que se espalha como cancro maligno.
Pela sobrevivência.
Sempre essa batalha pela sobrevivência, sua e das três filhas que criava a custo, querendo para elas mais do que a caligrafia ornamentada e vazia que de nada lhe servia com a enxada ou nas manobras da via.
No Portugal amordaçado e em surdina apenas não se consegue calar aquele brilho perigoso e mágico no olhar. Uma chispa cintilante e ressentida. No Portugal de mansinho apenas não se consegue silenciar o som da passada forte e cadenciada, como se cada passo fosse um gesto, uma marcha de liberdade.
Como se calcando a terra com a bota guardada a sebo e aferrolhada com protectores metálicos e estridentes, como se assim se gritasse liberdade.
Pode vergar-se um homem, mas nunca quebrar um olhar livre e uma passada vigorosa; com o vigor que só a raiva contida dá.
Manuel Vitorino continuou a marchar pela vida, a marchar até ao dia em que pela primeira vez, calçou os seus sapatos domingueiros, impecavelmente engraxados, vestiu o seu fato coçado de casamentos e funerais e tapou a melena rebelde com a bóina, outrora serviçal, agora alegre e jovial.
Doem-lhe os pés, mas Manuel Vitorino dá corda aos sapatos e ataca a subida da encosta da Gardunha.
Da sua quinta na planície até à Casa do Povo de Castelo Novo, serra acima, Manuel Vitorino marcha com a mesma determinação e o mesmo brilho no olhar com que fazia no tempo de todas as ditaduras – as grandes e as pequenas -, mas agora fá-lo abertamente, livremente.
Manuel Vitorino vai votar.
Vai pela primeira vez contar, ter voz. Vai poder escolher, participar, concordar, discordar, eleger.
Vai pela primeira vez juntar a voz, o olhar e a passada num só acto de consciência.
Vai poder saborear o pão da liberdade e cuspir o azedume rançoso de uma vida feita de obediências e humilhações.
Foi assim pela primeira vez, e foi assim sempre.
Desde o dia 25 de Abril de 1974, Manuel Vitorino, 76 anos, ferroviário reformado, lavrador rijo e homem duro, caligrafia ornamentada e ufana, olhar com o brilho límpido da liberdade, homem tão bom como outro qualquer e tão humano como todos os outros.
Desde esse dia de intensa claridade que Manuel Vitorino faz seis quilómetros a pé, com os seus sapatos engraxados, apertando-lhe os calos, sob o calor tórrido dos agostos ou o taró dos dezembros.
Desde esse dia que Manuel Vitorino vai votar. Para tudo, legislativas, autárquicas, presidenciais, europeias, referendos.
Não faltou a uma …
Manuel Vitorino costuma dizer “Um gajo andou quarenta anos com os cornos baixos e a bóina na mão. Já chega!”.
É neste "já chega" que se resume o valor da Democracia e da participação.
Para se saborear o pão da liberdade, nada como ter a memória amarga da privação.
De todos os livros, de todos os autores, de todas as filosofias, de todas artes, ninguém me soube, como ele, explicar a liberdade e a beleza magnífica da Democracia.
A soma de todas as partes, de todas as vontades (ainda que contraditórias), mas que na essência se resumem a um acto único de consciência e de poder. O poder decidir uma ínfima parte do nosso destino colectivo e como homens singulares.
É saber que todos, independentemente da nossa condição, raça, credo, da nossa caligrafia, dos nossos sapatos, da nossa passada; é saber que todos somos um, e todos somos iguais.
Todos contamos, todos marchamos pela liberdade.
Foi isso que um homem do campo com a quarta classe, uma caligrafia estudada de mestre-escola e uma passada firme e resoluta me ensinou.
É esse o legado de Manuel Vitorino, o meu avô.
É esse legado e profundo amor pela liberdade que foi traído no mês de Julho de 2004.
Foi traído pelo Dr. José Manuel Durão Barroso, pelo Dr. Santana Lopes, pelos 109 conselheiros do Partido Social Democrata, pelo Dr. Paulo Portas, pela matilha obediente e amansada dos jornalistas e comentadores de joelho gasto pela genuflexão e, por último, foi traído pelo Dr. Jorge Sampaio.
A todos eles ofereço os sapatos envernizados do meu Avô Manuel Vitorino.
O homem que durante uma vida marchou em surdina pela liberdade.
Pelos vistos não vai precisar deles, num país onde liberdade e Democracia são apenas histórias que os avós contam aos netinhos.
A eles os sapatos envernizados do meu avô, homem honrado e traído por uma corja de miseráveis engraxadores.
Guardem os sapatos, que a voz de Manuel Vitorino fica comigo para dizer “Já Chega”.
Avô Manel eu não me calarei, porque nem que seja uma só voz. Ela conta.
Não deixarei trair-me pela memória ou pela falta dela, nunca esquecerei esse dia negro em que a liberdade foi calcada pelos finos sapatos italianos dos políticos portugueses.
Os novos bastardos do poder terão em mim o mais dedicado cão-de-fila.
“Uivemos disse o cão”
Livro das Vozes
terça-feira, agosto 10
(nada como um dia de chuva durante o verão beirão para recuperar um certo spleen de alma que as nuvens sempre alimentam). de alcongosta até lá ao fundo a saliva do céu cobre os dorsos verdejantes das encostas. não há respiração sob a água. há o silêncio do tempo, a loucura dos bichos estáticos, o odor acre do húmus em regeneração. iluminam-se clareiras aleatoriamente quando o sol desce abrupto e espartilhado entre sombras. da janela parece que o chão respira: lá está o enredo de cerejeiras, videiras, frutos que sustentam as casas, a lonjura de sítios sem nome, os passos autoritários dos homens sobre a terra. tudo segue o seu curso comandado pelo inexorável movimento e o presente soletra um brilho diáfano. as perguntas gotejam, liquefazem a verdade sorvida pela terra prenha de respostas. colhemos punhados de nevoeiro para enfeitar a boca com palavras difusas. existe música. existe a escrita e os topos das árvores enleados na frescura do céu. harmonia, talvez. tacto e pele, a humidade dos gestos que buscam. é tempo de revelações.
sábado, agosto 7
Veremos o que escrevem os jornalistas desportivos acerca deste erro de "casting"
quarta-feira, agosto 4
Poesia ou nem por isso
Uma bátega
numa nádega
Um escarcéu
no Céu
Um pentelho
no joelho
Um recado
embalsamado
Um sorriso
plastificado
O dia
em agonia
numa nádega
Um escarcéu
no Céu
Um pentelho
no joelho
Um recado
embalsamado
Um sorriso
plastificado
O dia
em agonia
Música para a aldeia global
De 29 a 31 de Julho teve lugar, em Sines, o Festival de Músicas do Mundo, cujo mote é sempre a aventura, melhor, a ‘música com espírito de aventura’.
Nesse encontro da tradição com a modernidade, muitos foram os nomes a destacar, aliando sempre a diversidade à qualidade: Savina Yannatou, cujo amplo registo de voz lhe fez valer a sua experiência quer na música erudita, quer no jazz, David Murray e a sua alucinante capacidade de improviso, Pharoah Sanders, o ‘swing’ do Septeto de Roberto Rodriguez, a hipnose de Rokia Traoré, o ritmo contagiante de Femi Kuti e destaque especial para o baiano Tom Zé, cuja ‘performance’ fez com que cada música tocasse o hino, a cantiga interventiva, o rock, a poesia.
Presenciou-se assim uma exemplar demonstração da “world music”, modo como passou a ser designado um conjunto heterogéneo de formas musicais originárias de diversas regiões do planeta. Todas as vozes e todos os sons, ali reunidos pela vinculação a determinadas situações étnicas ou localistas, provaram, mais uma vez, que vivemos numa cultura translocal, que ultrapassa em muito os limites da territoriedade.
Uma das grandes conquistas foi, sem dúvida, a mistura e o sentido de igualdade que moveu cada participante, a partir não da anulação mas do reconhecimento e admiração pelo diferente. É certo que nem sempre é fácil conciliar o etnocentrismo com o multiculturalismo, no entanto, que melhor veículo do que a música para incutir o respeito pela diferença?
Essa foi, sem dúvida, uma das conquistas do Festival em Sines. Em três dias brilharam juntas as estrelas de todo o mundo.