quarta-feira, agosto 11

O dia em que traíram Manuel Vitorino

Para memória futura

“Uivemos disse o cão”
Livro das Vozes


Manuel Vitorino põe a bóina domingueira e veste o seu melhor fato.
Mete à estrada os seus sapatos envernizados.
Os pés doem-lhe, mas em passada firme, este velho e duro lavrador da Beira Baixa sobe a encosta da Gardunha com uma firme vontade.
Vestindo nas rugas um semblante resoluto, caminha com a mesma energia vital como sempre o fez quando era novo, galgando quilómetros até Alpedrinha, onde ia buscar o pão e iguarias aos seus patrões, os latifundiários senhores das terras baixas de Castelo Novo.
Ainda moço, de revólver no bolso, que o tempo era de sombras e a berma covil de salteadores (há tempos que voltam), Manuel Vitorino cumpria os 4 quilómetros até Alpedrinha com um estranho sentido de dever, que só a necessidade e a surda resignação instiga.
Os sapatos naquele tempo eram a planta dos pés enrugadas e calejadas pela terra e pela pedra aguçada e cortante.
Manuel Vitorino era filho de gente pobre dos Escalos de Cima, que migrara para a quinta dos senhores Caldeira, escudada no anfiteatro protector e de fertilidade árdua da Gardunha.
Deixaram a terra em que foram paridos com vagidos esfomeados em busca de côdea mais farta.
Se é que a côdea alguma vez pode ser farta.

Manuel Vitorino é irmão-pai de sete irmãos.
O seu pai perdeu-se na amargura do bagaço e na morte lenta do trabalho de montar carris, de montar via férrea. Labuta que mói e que mata.
Sobrou Rosário, mãe-coragem e oito filhos. Rosário que sustentava a prol com esse bem raro nos Escalos dos anos 30 – Saber ler e escrever.
Era ela que lia às velhas as cartas dos filhos emigrados na França ou em andanças para o Brasil.
Em troca da saudade distribuída por via postal recebia o pão as azeitonas e o alqueire de azeite, com que enganava a fome da prol.
Pagou com trabalho e sofrimento a caligrafia ornamentada e quase monástica do seu primogénito, Manuel Vitorino e dos restantes sete filhos.

Manuel Vitorino nunca foi menino.
Nasceu descalço e viveu descalço, obrigado a ser homem.
Os primeiros sapatos calçou-os aos 18 anos, já gastos e de remendão. Eram a sua farda juntamente com o revólver, que o capataz da Quinta dos Caldeira lhe deu para ser guarda da propriedade.
Foi criado na obediência cega da sobrevivência, calou revoltas, amordaçou raivas e injustiças. Cumpriu de bóina na mão as ordens do capataz, do senhor, do Estado e da Santa Igreja.
Obedeceu abafando a ira, mordendo os lábios num grito que ressoava nas vísceras – Filhos da Puta !

Manuel Vitorino casou e procriou. Trocou as botas cardadas de pastor, pelas botas bem engraxadas e rudes da companhia dos caminhos-de-ferro, com quem também celebrou laços conjugais para a vida.
Para 40 anos de matrimónio, feito de esperanças, traições e sofrimento.
Na CP, Manuel Vitorino ganhou mais um quinhão de liberdade, esse pão fresco e delicioso que sacia.
Mas apenas e só um quinhão desse pão grande e perfumado, um quinhão conquistado em noites frias ao relento, aquecendo-se na cálida camaradagem das fogueiras e do vinho carrascão, dando luz e orientação aos comboios como os velhos faroleiros faziam aos barcos.

Uma vida entregue à dureza da via, aos sortilégios da Companhia, a ver passar comboios, a fazer passar os comboios. E, mais uma vez, como sob as noites estreladas da Quinta dos Caldeira, calando revoltas, contendo recusas, domando a dignidade, cavando bem fundo a angústia que se espalha como cancro maligno.
Pela sobrevivência.
Sempre essa batalha pela sobrevivência, sua e das três filhas que criava a custo, querendo para elas mais do que a caligrafia ornamentada e vazia que de nada lhe servia com a enxada ou nas manobras da via.



No Portugal amordaçado e em surdina apenas não se consegue calar aquele brilho perigoso e mágico no olhar. Uma chispa cintilante e ressentida. No Portugal de mansinho apenas não se consegue silenciar o som da passada forte e cadenciada, como se cada passo fosse um gesto, uma marcha de liberdade.
Como se calcando a terra com a bota guardada a sebo e aferrolhada com protectores metálicos e estridentes, como se assim se gritasse liberdade.
Pode vergar-se um homem, mas nunca quebrar um olhar livre e uma passada vigorosa; com o vigor que só a raiva contida dá.
Manuel Vitorino continuou a marchar pela vida, a marchar até ao dia em que pela primeira vez, calçou os seus sapatos domingueiros, impecavelmente engraxados, vestiu o seu fato coçado de casamentos e funerais e tapou a melena rebelde com a bóina, outrora serviçal, agora alegre e jovial.

Doem-lhe os pés, mas Manuel Vitorino dá corda aos sapatos e ataca a subida da encosta da Gardunha.
Da sua quinta na planície até à Casa do Povo de Castelo Novo, serra acima, Manuel Vitorino marcha com a mesma determinação e o mesmo brilho no olhar com que fazia no tempo de todas as ditaduras – as grandes e as pequenas -, mas agora fá-lo abertamente, livremente.
Manuel Vitorino vai votar.
Vai pela primeira vez contar, ter voz. Vai poder escolher, participar, concordar, discordar, eleger.
Vai pela primeira vez juntar a voz, o olhar e a passada num só acto de consciência.
Vai poder saborear o pão da liberdade e cuspir o azedume rançoso de uma vida feita de obediências e humilhações.
Foi assim pela primeira vez, e foi assim sempre.

Desde o dia 25 de Abril de 1974, Manuel Vitorino, 76 anos, ferroviário reformado, lavrador rijo e homem duro, caligrafia ornamentada e ufana, olhar com o brilho límpido da liberdade, homem tão bom como outro qualquer e tão humano como todos os outros.
Desde esse dia de intensa claridade que Manuel Vitorino faz seis quilómetros a pé, com os seus sapatos engraxados, apertando-lhe os calos, sob o calor tórrido dos agostos ou o taró dos dezembros.
Desde esse dia que Manuel Vitorino vai votar. Para tudo, legislativas, autárquicas, presidenciais, europeias, referendos.
Não faltou a uma …

Manuel Vitorino costuma dizer “Um gajo andou quarenta anos com os cornos baixos e a bóina na mão. Já chega!”.

É neste "já chega" que se resume o valor da Democracia e da participação.
Para se saborear o pão da liberdade, nada como ter a memória amarga da privação.

De todos os livros, de todos os autores, de todas as filosofias, de todas artes, ninguém me soube, como ele, explicar a liberdade e a beleza magnífica da Democracia.
A soma de todas as partes, de todas as vontades (ainda que contraditórias), mas que na essência se resumem a um acto único de consciência e de poder. O poder decidir uma ínfima parte do nosso destino colectivo e como homens singulares.
É saber que todos, independentemente da nossa condição, raça, credo, da nossa caligrafia, dos nossos sapatos, da nossa passada; é saber que todos somos um, e todos somos iguais.
Todos contamos, todos marchamos pela liberdade.

Foi isso que um homem do campo com a quarta classe, uma caligrafia estudada de mestre-escola e uma passada firme e resoluta me ensinou.
É esse o legado de Manuel Vitorino, o meu avô.

É esse legado e profundo amor pela liberdade que foi traído no mês de Julho de 2004.
Foi traído pelo Dr. José Manuel Durão Barroso, pelo Dr. Santana Lopes, pelos 109 conselheiros do Partido Social Democrata, pelo Dr. Paulo Portas, pela matilha obediente e amansada dos jornalistas e comentadores de joelho gasto pela genuflexão e, por último, foi traído pelo Dr. Jorge Sampaio.

A todos eles ofereço os sapatos envernizados do meu Avô Manuel Vitorino.
O homem que durante uma vida marchou em surdina pela liberdade.
Pelos vistos não vai precisar deles, num país onde liberdade e Democracia são apenas histórias que os avós contam aos netinhos.
A eles os sapatos envernizados do meu avô, homem honrado e traído por uma corja de miseráveis engraxadores.
Guardem os sapatos, que a voz de Manuel Vitorino fica comigo para dizer “Já Chega”.
Avô Manel eu não me calarei, porque nem que seja uma só voz. Ela conta.
Não deixarei trair-me pela memória ou pela falta dela, nunca esquecerei esse dia negro em que a liberdade foi calcada pelos finos sapatos italianos dos políticos portugueses.

Os novos bastardos do poder terão em mim o mais dedicado cão-de-fila.

“Uivemos disse o cão”
Livro das Vozes


Comments:
Meu bom amigo fiquei emocionado com o teu texto, era bom que um dia destes fosses tu debaixo da boina e o esquivo talento a falar de ti...
Paulo F
 
Cheguei agora do Festival do Vento, de Castelo Novo, dum encontro de poetas ibéricos que me ficará para sempre na memória mais autêntica. Versos mágicos soprados pelo vento. Tenho pena de não ter ali estado o senhor Fernando Paulouro, certamente compreenderia a minha emoção.
Sabem porque não estavam lá os graníticos efectivos? Eu digo-vos porquê: porque se ouviu a voz da poesia, porque a chuva parou para o vento declamar, porque se ouviu a voz da cultura mais genuína, mais humana, mais pura, porque se viram os olhos das pessoas vibrarem, porque se viram as crianças sorrir rimando com a atmosfera, porque se ouviu a voz duma cultura ibérica e multidimensional, porque aquele pequeno local da lagariça se tornou universal pela poesia e pela participação daquelas pessoas. Onde estava o Nuno Miguel Henriques para aprender a declamar? Onde estavam os fiúzas e amigos da oposição? Onde estavam os professores e alunos de literatura do Fundão para aprenderam a ensinar e a amar poesia? Não podiam estar…O seu espírito alienado, ortodoxo e fechado não lhes permite aguentar tanta poesia. Não conseguem estar à altura nem do local nem do universal, são energúmenos sem memória e sem a mínima poesia ou humor, que só gostam de si próprios. Mas vendo bem, ainda bem que não estiveram lá, para não taparem a vista das pessoas nem para calarem a voz do vento.

Ass: Pascal
 
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