domingo, outubro 17
Ramos Rosa: O viajante intelectual
Fotografia publicada no jornal Público de 17-10-2004
“Não posso adiar o amor para outro século (...)
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação.”
António Ramos Rosa
António Ramos Rosa, poeta do presente absoluto e da «liberdade livre» é uma das vozes incontornáveis da literatura portuguesa. A simplicidade, a naturalidade ou simplesmente a depuração não se confundem numa poesia que deriva sobretudo do encontro com o mundo e com os outros. A originalidade e riqueza de imagens tácteis e visuais testemunham essa busca de uma unidade universal em que o poeta participa, consciente da questão do dizível e do indizível. Afirmação de vida, assim podemos caracterizar a poesia de quem, para além de crítico, ensaísta ou tradutor, se considera, acima de tudo leitor: “A poesia, tal como a própria crítica, é uma leitura, uma criação de um espaço. Uma leitura que requer muita atenção, mas que é também uma invenção”.
Tendo traduzido poetas, como Éluard ou Roberto Juarroz, coube-lhe um largo espectro, desde o teatro à psicanálise, da ficção ao ensaio: Marguerite Yourcenar, Nicola Abbagnano, Foucault, Gide, Brecht, Camus, Simeon Potter, entre muitos outros. Seja como crítico ou ensaísta, seja como poeta ou tradutor, António Ramos Rosa não hesita ao afirmar que sempre se deixou entusiasmar e influenciar apaixonadamente pelas palavras de consagrados ou de estreantes: “Todos os escritores que admirei e que li me marcaram. Não tenho receio ao dizê-lo porque não tenho medo das influências”.
O trabalho no comércio, ou as explicações, constituem talvez apenas uma série de acidentes de percurso numa vida onde a poesia, fruto de um feliz encontro, assume um papel determinante. “Eu não sei se procuro. O Picasso teve talvez melhor resposta: «Eu não procuro. Encontro».”
Foi esse encontro que o fez renunciar a tudo o mais em nome da poesia e nele a biografia foi-se escrevendo sob a forma de bibliografia:
Sou um funcionário apagado
Um funcionário triste
A minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
Tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado de um dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
(O Grito Claro)
casa de escritas- escritório de Ramos Rosa em Lisboa
O olho lírico de Ramos Rosa levou-o a criar um campo semântico onde se privilegiam palavras tão elementares como pedra, árvore, mão, insecto, água porque “na poesia o essencial não será talvez exprimir qualquer coisa conhecida mas tornar evidente, actual e presente algo que é insondável”. Essa desmaterialização das coisas é também fruto de uma íntima consonância com o universo, tornando-se também o poeta corpo do mundo: “Cada poema foi feito num determinado momento e é uma reflexão desses instantes, da minha relação com o mundo que guardo na memória e que tento fixar com palavras”. Este enraizamento na Terra, tão elementar e autêntico, presente já no primeiro livro O Grito Claro (1958), fá-lo reconhecer com alguma emoção: “Um das coisas que mais me marcou foi, em 1957, ainda eu não tinha publicado o meu primeiro livro, Adolfo Casais Monteiro me ter dedicado as seguintes palavras no Jornal do Brasil: «António Ramos Rosa impõe-se à primeira vista, acho eu, como um poeta de profunda autenticidade; nos seus versos não há uma imagem que não venha dum lugar ‘habitado’ – quero eu dizer: que não tenha sido alimentada por qualquer coisa muito viva dentro dele, seja na ideia, seja no coração, seja no instinto. São ‘verdadeiros’, e falam da vida sem deixar de falar de experiências íntimas. São sinais duma luta pela expressão, e não exercícios, nem habilidades de circo. São poesias»”.
O universo poético de António Ramos Rosa consiste numa exploração ontológica, numa apropriação de espaços através da palavra poética, mesmo porque “um poema não é um tema mas, muito mais do que isso, é a maneira como se aborda um determinado tema. Talvez seja por isso que Rimbaud chamou à poesia «liberdade livre»”. Tendo utilizado essa expressão como título de um dos seus livros, Ramos Rosa conta com algum humor um dos episódios que mais o marcou: “Estava eu em Faro e tinha por costume ir todos os dias à Livraria Silva, onde estava exposto este meu livro. Convém também acrescentar que eu já tinha um cadastro político desde muito novo. Um dia, um agente da PIDE deparou-se com o livro na montra da livraria e apreendeu-o. No entanto, qual não foi a minha decepção quando o livro foi devolvido por não ter nenhuma matéria subversiva!”
Preocupado em ser ‘corpo do real’, mediado pelo corpo da terra, pelo corpo da mulher ou pelo corpo da palavra, o poeta reflecte sobre a questão do olhar, a par de uma aguda consciência da fugacidade do tempo: “Quando nos habituamos a ver as coisas inseridas no seu respectivo contexto acabamos por não as conseguir ver na sua originalidade”. Talvez por isso reconheça a sua simpatia por filosofias como o Budismo Zen que lhe serve de referência não só para o seu ofício de poeta, mas também para os desenhos que faz e que lhe dão um novo fôlego: “A cultura oriental, neste caso o Budismo, tem um ensinamento muito interessante que se aplica bem a esta situação: imagine um arqueiro. Esse arqueiro tem uma flecha. A melhor maneira de o arqueiro acertar no seu alvo não é de forma alguma comprimir-se, mas sim lançar a flecha o mais espontâneo possível. É assim que eu faço os meus desenhos.”
Essa necessidade de respirar as palavras, tão natural quanto espontânea, justifica a sua reflexão sobre o olhar: “O que é ver, realmente, qualquer coisa? É ver não através de uma cortina mental, mas com espontaneidade e abertura”.
Tido como um dos grandes poetas contemporâneos, Ramos Rosa faz 80 anos no dia 17 de Outubro, aos quais se poderiam somar mais de 80 livros publicados. As palavras são a sua dádiva, o grito de liberdade que nos faz, enquanto homens, participar dessa felicidade exultante e viva: “O homem é um grito, e se o poeta não sabe dar esse grito primordial não se poderá considerar um poeta.”
Nota Biográfica
Nascido a 17 de Outubro de 1924, António Victor Ramos Rosa é natural de Faro. Trabalhou como empregado de escritório, desenvolvendo simultaneamente o gosto por autores portugueses e estrangeiros, sentindo-se logo fascinado com a modernidade da poesia de José Régio e Fernando Pessoa. Em 1945 vai para Lisboa, regressando dois anos depois a Faro, tendo integrado as fileiras do M.U.D Juvenil. Outros poetas passaram a ser objecto da sua atenção, tais como: Carlos Drummond de Andrade, António Machado, Pedro Salinas, Éluard, Bonnefoy, Wallace Stevens, entre outros. Regressado a Lisboa, leccionou Português, Francês e Inglês, para além do emprego numa firma comercial, e iniciou a carreira de tradutor para a editora Europa-América. O crescente interesse pela literatura levou-o a colaborar com vários jornais e revistas, acabando por fundar, em 1951, a revista Árvore, uma das mais marcantes da época. Co-dirigiu ainda as revistas Cassiopeia e Cadernos do Meio-Dia, sinais de um crescente interesse pela actividade literária. Como poeta, estreou-se na colectânea O Grito Claro (1958) e, em meados dos anos sessenta, radicou-se em Lisboa, onde publicou Viagem Através Duma Nebulosa (1960). Ramos Rosa, também tradutor, publicou dezenas de volumes de poesia e alguns importantes volumes de ensaios. Tem recebido numerosos prémios de poesia nacionais e estrangeiros, entre os quais o Prémio Pessoa (1988) ou o Grande Prémio Internacional de Poesia, no âmbito dos Encontros Internacionais de Poesia de Liège (1990).
Comments:
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Um grande poeta, uma foto brilhante, uma expressão facial que denota serenidade e sabedoria. 'É urgente o amor'.
Rui
Rui
"Com seus campos, seus arbustos, ele caminha,
a folhagem solar dentro do corpo.
É um animal cordial e iluminado
pela sede, pelo odor, pela firmeza.
Cada pálpebra que se fecha
é folha cheia, cada olhar
a mão no dorso quente:
estilhaços de luz, concentração mortal.
Aqui não há venenos mas um cavalo que nasce
da brancura plena e anseia ser a busca
de um animal mais alto, mais puro e mais perfeito."
A.Ramos Rosa, de «O Ciclo do Cavalo»
PS - Bela ideia a desta evocação. 80 anos de palavras.
a folhagem solar dentro do corpo.
É um animal cordial e iluminado
pela sede, pelo odor, pela firmeza.
Cada pálpebra que se fecha
é folha cheia, cada olhar
a mão no dorso quente:
estilhaços de luz, concentração mortal.
Aqui não há venenos mas um cavalo que nasce
da brancura plena e anseia ser a busca
de um animal mais alto, mais puro e mais perfeito."
A.Ramos Rosa, de «O Ciclo do Cavalo»
PS - Bela ideia a desta evocação. 80 anos de palavras.
"que limites para o conhecimento de si mesmo
e a própria experiência do mundo? é costume
reflectir, usar o espelho, começar pelas feições,
investigar o seu significado melancólico,
entre a ambição e a amargura e alguma vaidade
de chegar ao mundo a partir do nosso olhar
sobre o que somos e não somos, são questões
de profundidade de campo, de abertura objectiva,
de luz dos olhos que, diz o sermão da montanha,
são a candeia da alma, num relance intrigado
ou num relâmpago do flash mental. coisa mental
é o retrato, sempre."
e a própria experiência do mundo? é costume
reflectir, usar o espelho, começar pelas feições,
investigar o seu significado melancólico,
entre a ambição e a amargura e alguma vaidade
de chegar ao mundo a partir do nosso olhar
sobre o que somos e não somos, são questões
de profundidade de campo, de abertura objectiva,
de luz dos olhos que, diz o sermão da montanha,
são a candeia da alma, num relance intrigado
ou num relâmpago do flash mental. coisa mental
é o retrato, sempre."
Acho que é uma grande fotografia. Sobretudo porque tem movimento, iluminações e emoções.
Deve ser uma das melhores que já vi do Ramos Rosa.
Deve ser uma das melhores que já vi do Ramos Rosa.
Grande "post"! Parabéns ao Ricardo! Só não percebo porque faz do granito uma extensão do Jornal do Fundão...mas isso também não interessa muito. Parabéns!
Acho mesmo muito porreiro haver esta partilha, mesmo que de trabalhos que se vão fazendo profissionalmente. Um blogue é também para isso - para ser actual e presente no nosso dia a dia. É de facto uma grande reportagem que merece ser publicada no jornal do fundão, aqui no granito ou em qualquer outro meio de comunicação. As fotos são também todas muito boas. E falando em jornal do fundão, também reparei, como beirão que sou, que dos vários jornais que celebraram o aniversário do Ramos Rosa, o jornal do fundão deu-lhe o destaque merecido. Aposto que o poeta deve ter ficado muito contente. Parabéns Ricardo. Continua com o bom trabalho.
Foda-se, é incrível como um gajo desce tão baixo só para recuperar a auto-estima: agora o ricardo até escreve na terceira pessoa a elogiar o seu trabalho...que decadência!é que é tão evidente...que ridículo! não engana ninguém...
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