sábado, maio 15

Os planos do não-dito

conversa com Pedro Costa






“Das nossas mãos que restará fazer?

Quem há-de lembrara cadeira a porta a árvore?

Pousando o tempo sobre o nosso sangue
pousando o sangue sobre o nosso corpo
das nossas mãos que restará fazer?”

João Miguel Fernandes Jorge




Entrevista de: Ricardo Paulouro


Tendo frequentado o curso de História da Universidade Clássica de Lisboa, Pedro Costa optou em 1980 por ser cineasta. Estreou-se na longa-metragem com O Sangue (1980) e o seu talento para o cinema foi-se afirmando com Casa de Lava (1994), Ossos (1997) ou No Quarto de Vanda (2000). Nos seus filmes, a geometria das imagens é fortemente marcada pela presença da rua, da casa, das pessoas. Talvez porque se pensarmos o cinema para além de uma sucessão de imagens, apercebemo-nos da sua capacidade de organizar e ordenar o tempo, de fragmentar e reconstruir o espaço. E se falamos de tempo e espaço é talvez porque ambos participam, porque se tornam inteligíveis, na dinâmica da narrativa. Numa sociedade onde a imagem é já um estigma para a memória, através dos seus filmes, Pedro Costa reforça a dimensão de enigma do cinema, algo que não se pretende nem identificar, nem resolver. Apenas anunciar como um desafio a quem o partilha face ao grande ecrã. Ao contrário do que se poderia pensar, o realismo dos acontecimentos dos seus filmes não pretende induzir o espectador como testemunha. Pretende sim fazê-lo mediador do silêncio intersticial do acontecimento visual que é o filme. Talvez porque o filme deve sempre ser protegido de um fim que nunca pode nem deve ser encontrado.


- Quando é que se sentiu atraído pela estética do cinema?
- O que me interessou desde início não era a estética. Interessou-me sim passar a estética a outra coisa. No entanto, respeito tanto um fotógrafo como um pintor, ou um músico. O cinema para mim não tem, melhor, não deve ter uma componente narcísica que incida sobre o realizador. Talvez eu tenha sido atraído pelo cinema justamente por isso.

- Existe, no entanto, uma componente narrativa muito evidente nos seus trabalhos…
- Acredito realmente numa espécie de narração, isto é, que as coisas podem ser contadas, construídas, reconstruídas e destruídas. Digamos que é um tipo de silêncio que tenta resistir a esta espécie de cinema que se consome. É muito assustador ver pessoas que só conseguem comunicar porque passam meia hora a falar apenas sobre um filme. É claro que tem um lado positivo, mas almoços e jantares a pretexto do que se faz em cinema não é certamente o melhor caminho a seguir. Em suma, não gosto das máquinas, da forma como a sociedade está organizada em função do consumo. Tudo está demasiado acessível. E o cinema não pode ser assim tão acessível e comunicar assim tão facilmente porque essa distância que o cinema deve criar é que incute a dúvida, a vontade de voltar.

- É essa distância que tenta cultivar nos seus filmes?
- Talvez. Um filme é um filme e um espectador é uma pessoa que o vê. Essa pessoa não pode projectar-se no filme. O que eu acho que se passa actualmente é que a maioria das pessoas projecta as suas histórias pessoais no filme que vê. O movimento é assim inverso entre o ecrã e a comunicação que se estabelece com o ecrã. Quando este equilíbrio não é sereno e silencioso esta comunicação não resulta. Mesmo porque o cinema não é diferente de uma pintura ou de uma música. E raras vezes uma pessoa se projecta numa música de Bach ou de Beethoven.

- Talvez o cinema nos seja tão próximo porque é feito de imagens…
- Sem dúvida. O cinema é quase como um fantasma na medida em que é feito de imagens e qualquer pessoa é feita de imagens, de sonhos, de projectos. Actualmente as pessoas substituem as imagens que vêem no cinema pelos seus próprios desejos. Talvez porque o cinema sempre tenha servido para substituir um grande falhanço humano.

- Sente que o cinema está a ser subvertido pelo capitalismo que progressivamente toma conta da sociedade?
- Uma imagem hoje em dia é como um euro, uma moeda de troca utilizada em função dos sentimentos do espectador. Mas uma palavra de um poema, uma imagem, uma música não podem ser nunca uma moeda de troca. É quase como dizer que o dinheiro é bom. O dinheiro não é bom. É o princípio do mal de todas as coisas. Para mim o único mal é que eu acreditei que o cinema é uma coisa interessante de se fazer mas que tem necessariamente de lutar contra o capitalismo.

- Os seus filmes nascem geralmente de ideias pré-concebidas, fruto de uma reflexão apurada, ou de sensações, encontros, lugares e memórias?
- Eu acho que o processo criativo tem de ser mais puxado para o lado real sem o deixar cair no lado mais romântico. No meu caso, um trabalho só se põe em marcha quando começo a trabalhar em campo. Nunca tive uma ideia para fazer um filme e espero nunca a vir a ter. O cinema está muito próximo, segundo penso, da música, mas não se pode estar à frente de umas folhas de papel e escrever um guião a partir de uma ideia. No cinema não há uma ideia. Há ramificações de ideias, há todo um enquadramento de pessoas e situações que me fazem depois, eventualmente, ter uma ideia. Talvez aquilo que mais me agrade no cinema é que me obriga a estar na rua e não no quarto a escrever.

- É o teatro da vida o que mais lhe interessa captar?
- Digamos que é o teatro, a poesia, a música da vida, seja o que for. O cinema para mim é uma coisa da rua, que nasceu na rua, para filmar a rua, e que foi progressivamente silenciado e talvez desvirtuado relativamente a essa origem.

- Foi esse silêncio, quase perturbador, que o levou a filmar no Bairro das Fontainhas?
- No Bairro das Fontainhas eu consigo ouvir-me pensar, por exemplo. O cinema para mim tem outro lado também muito positivo – é uma arte que serve para pensar muito. Não tem a faceta de isolamento e solidão como pode ter a pintura, mas tem uma faceta muito humana, quase ‘suja’ se assim o podemos dizer. No cinema é preciso passar por alguma ‘sujidade’, até mesmo pelo kitsch do mundo para conseguir fazer um filme. É claro que quando era mais jovem e comecei a fazer cinema, encarava esta arte como algo puro mas, pouco a pouco, apercebi-me que a dinâmica do cinema se constrói através de forças muito mais primitivas.

- Viver e pensar, ou vice-versa, são os binómios subjacentes à preparação de um novo trabalho?
- Um dos maiores cineastas, para mim, é o Buñuel. Os seus filmes já eram trabalhos gigantescos mas olhemos, por exemplo, para a sua última fase, que é talvez a fase mais mal percebida, como é o caso do Fantasma da Liberdade que é um filme que sempre permanecerá por razões óbvias. Caracterizá-lo como realista ou hiper-realista, o que importa é que é um filme de uma agudeza impressionante. Este exemplo tem muito a ver com a minha resistência a algumas coisas como o pensar que se vou escrever alguma coisa já poderei estar a criar demasiado ruído em determinadas histórias, logo, já me estou a impor uma coisa que não vi ou ouvi. Interessa-me sim escrever depois de viver, de ver e de ouvir as coisas.

- O anonimato é uma questão importante no seu processo de criação?
- O melhor elogio que eu tive a um filme – No Quarto de Vanda – foi dizerem-me que se aproximava muito a uma reportagem. Isto pressupõe obviamente que se vê menos de mim do que, por exemplo, nos Ossos. Não sei se devo falar de um anonimato mas gostaria muito de conseguir uma liberdade desse género.

- A personagem Vanda acaba por representar a condição humana…
- Neste filme há talvez uma espécie de adequação de duas forças, como existia também no cinema mudo. Há tempos alguém dizia uma coisa muito bonita: não sei se já repararam nos surdos-mudos e na sua linguagem gestual. Normalmente estão sempre a rir ou com uma expressão relativamente alegre, quase exuberante. É quase como se fizessem barulho sem na realidade fazerem barulho nenhum. O cinema acabou por ficar mais triste, talvez demasiadamente estético, um pouco de acordo com as exigências da sociedade. O filme No Quarto de Vanda não me parece de todo ser um filme difícil. Tem sim uma forma que é pouco confortável para quem o vê: é longo, mostra uma realidade que quer ser negada. Talvez a grande questão seja mesmo essa – as pessoas já não se dispõem a ler ou a ver as coisas. As pessoas só querem ver o sofrimento de uma certa maneira. O sofrimento sem maquilhagem ou camuflagem assusta demasiado.


- Existe então um vínculo indissociável do cinema ao real...
- O cinema pode ser comparado ao ofício do pedreiro. Não deveria existir qualquer tipo de «talentos artísticos especiais» enquanto requisito para conseguir fazer um filme. Mesmo porque eu nunca vi um pedreiro ou mesmo um padeiro que desistisse de fazer o pão. O cinema é também ele feito de uma sucessão de imagens organizadas em torno do som, de forma a construir um determinado sentido. Não encontrar a pedra seguinte parece-me tão bizarro como um pedreiro não encontrar a pedra seguinte para construir uma casa.

- O cinema mostra o(s) mundo(s)?
- Para mim a obra de um artista é uma economia, no sentido em que se está sobretudo concentrado na visão. Mais que mostrar o mundo, o cinema serve para concentrar o mundo, a visão.

- Sente que o realismo dos seus filmes pode ser associado, por vezes, a um certo olhar pessimista?
- O Buñuel dizia que qualquer filme tentava sempre mostrar, fazer passar ou dizer uma mensagem, mas que este não é o melhor dos mundos. Eu sinto que se me separar de determinadas realidades que eu tenho filmado me separo de 99% da Humanidade.

- Mais do que uma dimensão humana, trata-se, sobretudo, do que é genuinamente real...
- Aquilo que eu encontrei, por exemplo, nos EUA não difere muito do que encontrei nas Fontainhas. Encontrei muitas Vandas, muitas mães de Vandas, iguais e simultaneamente muito diferentes. A Vanda é uma pessoa muito especial, mas as outras Vandas vivem no mesmo planeta. Eu sinto-me privilegiado por fazer um trabalho que me obriga a ter um contacto com a vida, com o real. O António Reis dizia-nos sempre que quando se vai fazer um plano não é a estética que importa. Tem-se sim de arriscar a vida naquele plano, caso contrário não vale a pena. E ‘arriscar a vida’ é realmente pôr tudo em causa, a cada instante.

- Acredita então que o cinema deve viver sobre uma ‘ética de esforço’?
- Estou plenamente convicto disso. Interessa-me que as pessoas saiam do cinema depois de terem visto um filme meu e que levem consigo não necessariamente uma história, mas uma sensação, uma imagem, uma sequência, um objecto. É essa reconstrução da realidade que fica na cabeça de cada espectador que pode elogiar o meu trabalho.



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