terça-feira, maio 11

O Silêncio de Monsieur Ramos

À Adrianne





Durante muitos anos no estrangeiro conduzi uma autêntica cruzada contra os barulhos mais diversos produzidos pelos meus vizinhos.
Esta minha preocupação em impor silêncio à minha volta pode hoje parecer uma insensatez a muita gente, e embora me tenha trazido muitos dissabores, é a causa principal do meu regresso à pátria onde actualmente tenho a fama de ser um escritor silenciado.
Mas vamos por partes. Contemos algumas dessas aventuras que não têm nada a ver com a minha situação presente, que por mais paradoxal que pareça, não afectam hoje a minha memória ou o meu poder criativo. Sei que algumas pessoas mais vulgares (das muitas que conta este país) dirão que se voltou «o feitiço contra o feiticeiro» mas eu acho que o futuro da literatura passa por estas cruzadas, estas batalhas, estas lutas, estes élass. Que seria a literatura francesa sem as dívidas de Baudelaire? Qual seria o futuro da literatura inglesa sem a propensão de Malcolm Lowry para o whisky? E qual seria o destino da literatura universal sem a decisão de Kafka de abandonar definitivamente o emprego nas Assicurazione Italiani para se dedicar inteiramente à literatura?
Conto pois aqui algumas das minhas modestas aventuras em França e peço-lhes que não me chamem louco varrido.
Vivia eu com a minha futura mulher em Toulouse, num belo apartamento ao lado do rio Garona, e escrevia eu o meu terceiro livro, quando se produziu um facto extraordinário na minha vida. Pela primeira vez vi que os tectos que não eram falsos se abaulavam, rangiam e perturbavam o avanço da minha escrita.
Imediatamente tomei providências. Fui falar com os vizinhos que habitavam por cima de mim, um casal de estudantes e um amigo, e intimei-os para que fizessem atenção quando andassem e que o melhor era usarem pantufas.
O efeito desta minha intervenção foi nulo. Emperravam os capítulos do meu livro, exasperavam-me com os ruídos da madeira que em certos sítios pareciam as sete trombetas do Apocalipse. Em certos dias ficava horas parado à espera de ver surgir uma perna ou um pé fulgurante na brancura imaculada do tecto.
Resolvi ser feroz com o estudante que passava mais tempo em casa e um dia encurralei-o na escada de cimento do prédio.
Foi o pior que lhe podia fazer. No dia seguinte ele andava ferozmente em cima de mim de um lado para o outro do apartamento. Fazia de propósito.
Não podia escrever. Não tinha forças, nem imaginação.
Para cúmulo da perversidade este estudante-trabalhador inventou um dia um processo que lhe permitia estar sempre em casa: desempregou-se. E começou a receber em casa outros estudantes-trabalhadores que usufruíam como ele de indemnizações chorudas das Agências Nacionais do Emprego. Eram autênticas orgias.
Um dia fui-lhe bater novamente à porta. Ameaçou-me com um pau de baseball.
Tive que mudar de casa.

Aluguei discretamente um outro apartamento não muito longe deste, e também ao lado desse soberbo rio tantas vezes visto por Montaigne.
Agora viva no último andar dum prédio com quatro andares que datava dos princípios dos anos sessenta.
Neste edifício bem arejado e soalheiro ouvia-se tudo. Quando as pessoas faziam amor que era geralmente aos Sábados. Quando davam um peido que era sempre às segundas-feiras depois dum jantar de lentilhas. Quando urinavam com pingos dolentes nas sanitas que tinham trinta anos de idade.
A minha vizinha de baixo era costureira e ama-seca e o marido representante de produtos farmacêuticos.
De manhã quando eu me levantava às sete da manhã para escrever ouvia já a máquina da minha vizinha em movimento. Era um ruído infernal, que eu a princípio pensei ser duma trituradora de crianças.
Como o marido só vinha aos fins de semana a casa, não sei se para fazer amor ou administrar-lhe alguns comprimidos para a insónia crónica, um dia queixei-me a ele.
Foi a pior coisa que podia ter feito. Ciumento por eu ter falado à mulher dele na sua ausência dum assunto que a seus olhos era risível (a única literatura que conhecia este ignorante era a literatura dos produtos farmacêuticos) pegou-me nos colarinhos da camisa e quase que me ia deitando das escadas abaixo.
Salvei a vida graças ao Concorde que nesse dia aterrava em Toulouse.
Tive pois que mudar mais uma vez de apartamento sem ter terminado o meu quarto livro.

Depois desta aventura e de outras mais simples e mais antigas que entram no catálogo nacional dos barulhos mais infernais que podem perturbar um escritor (começando pelas panelas de pressão em movimento e terminando nos gira-discos Telefunken) resolvi procurar a paz e o sossego numa pequena aldeia nos arredores de Toulouse – depois de já ter mudado quinze vezes de casa.
Talvez aqui encontrasse forças para acabar a minha obra mais ambiciosa que era um romance com perto de mil páginas.
Para o meu silêncio que queria perfeito escolhi uma casa a reconstruir e dotei-a das protecções máximas contra os ruídos exteriores.
Porém como não tinha sorte nenhuma com os vizinhos – talvez pelo facto de eu pronunciar mal a palavra “maison”, eu dizia “mais son” – desta vez, hélas, calhou-me o número mais negro da lotaria e tive uma aldeia toda contra mim.
O meu vizinho mais imediato era um velho irascível de nome Durand que fazia pescatos de carpintaria e ainda por cima andava de bem com todo o vinho de Gaillac.
Logo que me viu no meu jardinzeco contíguo ao seu atelier pôs a funcionar a sua raspadeira para dizer que era ainda um homem activo.
Eu franzi o sobrolho e imediatamente concluí que a nossa vizinhança ia terminar mal, tendo apercebido através dos vidros partidos da porta da sua oficina vários tonéis de vinho encostados a um banco com um torno muito brilhante.
O que havia de acontecer, aconteceu.
Plantei vários coníferos e o velho Durand massacrou-me os ramos mais laterais e silenciosos.
Outro dia raspava ele uma porta velha quando eu lhe entrei pela oficina adentro exigindo silêncio.
Silêncio, dizia ele já entornado, e ria. Tinha encontrado na minha pessoa o homem que iria prolongar por mais uns anitos a sua vida.
A partir daí os meus capítulos estavam todos cheios de serradura e alguns mesmo tinham dentes de serra que projectados tinham vindo pelos ares.
O Durand continuava pois de propósito a massacrar-me com o barulho dos seus instrumentos sibilantes quando um dia o encurralei no meio duma passagem de peões e lhe apertei o gasganete. Quase que fomos atropelados os dois por um destravado internacional com um camião carregado de tomates.
No dia seguinte às sete da manhã (hora em que eu me deliciava com os últimos capítulos do meu livro) já o nosso homem estava bêbado e fazia manobrar, não sei com que mãos excessivas, todas as máquinas da sua oficina.
Para não o matar resolvi outra vez mudar de casa. Mas antes ainda experimentei introduzir nos tímpanos os protectores de borracha que usam os mergulhadores submarinos mas isso trouxe-me muitos equívocos e perdas de identidade. Agora era eu que perseguia os meus próprios barulhos… E um dia quase me matei a mim próprio com uma faca da cozinha…

Resolvi pois mudar de casa mas a minha mulher que andava já farta de carregar com a trouxa às costas pediu o divórcio.
Assim regressei ao meu país onde sou um escritor silenciado.
Às vezes quando me debruço sobre o meu passado com os meus raros amigos falo, referindo-me a todas estas expedições minhas contra os meus vizinhos, de Napoleão e a batalha do Marengo, do comandante Henrique Galvão tomando silenciosamente o “Santa Maria” e do silêncio final de Nietzsche.
Eles ficam sérios e mandam vir mais garrafas.


Texto inédito

Abril de 2004

Manuel da Silva Ramos

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