terça-feira, março 16

A “fúria” espanhola também é democracia


Velasquez, Casaco sangrento de José entregue a Jacob, Mosteiro de San Lorenzo de Escorial (Madrid)

A vitória do PSOE e de Zapatero nas eleições espanholas do passado domingo representa, segundo a generalidade dos analistas, a primeira derrota democrática de Georges W Bush e da coligação internacional que meteu a pata na “poça de petróleo” iraquiano. Esta é a visão de uma certa esquerda destrambelhada e irresponsável na sua cegueira ideológica que lhe tolhe uma mundivisão que, mais do que nunca, se pretendia clara e bactereologicamente pura.
Ao admitir que o resultado das eleições espanholas é uma derrota democrática das opções, obviamente discutíveis, da política externa espanhola, estes diletantes pensadores estão implicitamente a admitir que o terrorismo da Al-Qaeda teve a sua primeira vitória democrática, graças ao mais sangrento “golpe de campanha eleitoral” de que há memória.
É por isso que a exultação e o rejubilar da esquerda visível e tradicional, com a vitória de Zapatero é bastante mais do que uma manifestação de camaradagem e de afinidade ideológica com um partido de esquerda.
A esquerda rejubila com a derrota de Bush, colocando-o ironicamente na frente da luta contra o terrorismo global. Mas, afinal a Guerra no Iraque tem ou não tem a haver com o terrorismo ? Era bom que se decidissem sobre essa matéria, ao invés de assinarem artigos de Loja de Conveniência.
Em condições normais, eu próprio saudaria e exultaria com a vitória de Zapatero e do PSOE, contra um PP austero, autoritário e ferozmente neo-liberal, que custeou o “milagre económico” espanhol com o crendice e a inescrepulosa aplicação do receituário do capitalismo selvagem.
Acontece que as eleições espanholas não decorreram em condições normais, o “volte-face” eleitoral, contra todas as sondagens tem duas leituras possíveis e nenhuma delas se inscreve na lógica de saudável alternância democrática.
A primeira, e a preferida pelos “analistas” de esquerda, é que o povo espanhol puniu Aznar e o PP pelo envolvimento no conflito iraquiano atribuindo-lhes uma sinistra “co-autoria” moral dos atentados em La Tocha. A segunda leitura, “dilecta” dos analistas e comentadores encostados mais à faixa da direita, explica a “hecatombe” eleitoral do PP, com a inábil gestão da informação nos dias seguintes ao 11 de Março, quando hipocritamente o PP tentou imputar à ETA a autoria dos atentados, ocultando informações que conduziam à pista árabe.
Pessoalmente acredito que para a reviravolta eleitoral contribuíram e pesaram ambos os factores, acrescido de um terceiro que tem sido ignorado.
O atentado gerou uma onda emocional avassaladora e que se traduziu na mais baixa abstenção desde 1982. Ou seja, o atentado despertou um eleitorado “adormecido” colocado normalmente ao centro e que com o clima emocional e de intervenção de “la calle” (a manifestação em frente à sede do PP é absolutamente execrável nos fins e nos meios), pendeu para um voto de repugnância e ruptura.
Todos sabemos que em períodos eleitorais os “climas” emocionais favorecem a esquerda, e os “climas” racionais favorecem a direita.
Foi esse despertar doloroso do “centrão”, que em última análise, ditou a vitória eleitoral socialista, mas a imagem que perpassa e que serve os ignóbeis interesses da Al-Qaeda é que Espanha se “acobardou”, quando o terror lhe bateu à porta e não lá longe na América ou em Bagdad.
Essa é de resto, a análise pronta a vestir dos perigosos patetas a soldo, como Luís Delgado e outros idiotas da direitinha sem coluna vertebral para poder emitir juízos de valor sobre a coragem ou cobardia de um povo habituado a conviver com bombas na rua e com a eminência de tiros na nuca, enquanto estes sacripantas se deleitam com almoçaradas conspirativas nos Pab´s e nos cargos opulentos que o seu carácter postibular lhes vai granjeando.
Luís Delgado e essa camarilha de filhos da puta não têm autoridade moral para falar de medo e cobardia, refastelados no remanso dos seus gabinetes e nos estúdios televisivos.
De todos os povos da Europa, o espanhol é talvez o que menos medo tem do terrorismo, amargamente habituado a conviver com ele durante três décadas. Por isso, a massiva afluência às urnas Domingo representa tão só um gesto colectivo de coragem e de revolta, expressa talvez de uma forma excessivamente emocional, mas que dificilmente pode ser apodada de cobarde ou amedrontada.
Em síntese, e por mais conveniente que seja para os rebanhos ordeiros da política à portuguesa – à esquerda e à direita - dificilmente o sentido de voto do povo espanhol pode ser interpretado ao sabor dos interesses da internacional socialista ou da coligação pró-americana.
Haja pelo menos algum pudor nisso.
Os espanhóis votaram de “fúria” e de “raiva”, são sentimentos irracionais, talvez, mas tão enraizados na “alma espanhola” que fazem parte do seu devir colectivo e que felizmente podem ser expressos pelo meio do voto, a única arma de porte autorizado em democracia.
Confio na sabedoria e na soberania do povo espanhol, mesmo acreditando que se La Tocha não tivesse ocorrido, hoje seria o PP a chefiar o Governo. Isso não me autoriza a mim nem a ninguém a julgar um povo ou um eleitorado por ter reagido emocionalmente a uma tragédia humana e colectiva de proporções jamais vistas na moderna Europa dos valores civilizacionais e da tolerância como bem absoluto.
Apesar dos canalhas da ETA, e da Al-Qaeda, a Espanha continuará a ser um país democrático, civilizado, e humanista. Essa é a grande vitória e a lição exemplar que o povo espanhol deu e vai continuar a dar.

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