domingo, dezembro 14

Uma caçada domingueira

A caçada deste Domingo rendeu ao caçador global americano uma peça grossa, digna de alcandorar ao cimo da lareira da Sala Oval, numa homenagem à nativa tradição escalpeadora.
Acossado, e rendido no covil da besta, a personificação do Mal foi finalmente capturado pela cavalaria de arcanjos que zela pela beatitude normalizada de um Bem Global. Exibido como troféu de caça pelo servil amplificador mediático, que estende graciosamente uma passadeira intercontinental aos tele-evangelistas do Bem, Saddam Hussein era a imagem da derrota.
O orgulho árabe finalmente mordia o pó, como os vilões do velho Far West acabavam sempre por tombar na moralidade derradeira do Colt 45. A vitória do Bem sobre o Mal, numa encenação cinematográfica de “western spaghetti”, servido em compensação gástrica, depois da díficil digestão de um perú de Acção de Graças, que plastifica a forma de fazer política aldrabona da actual Administração americana.
O escalpe de Saddam exibido com ar triunfalista pelos americanos, numa propagação indecorosa e ajavardada da Vitória, e da humilhação dos vencidos. Perigosa uma Nação que não sabe perder, e muito menos vencer.
A América tem mau ganhar, isso está claro.



Lembro-me do traço barroco e grotesco dos personagens de Enki Billal, no livro “A Caçada”, quando um “américa” anuncia com misce en scéne de show bizz – “ladies and gentleman, we`ve got him”.
A desumanindade feroz, e a vã glória da imunda caçada de Billal, estão estampadas no rosto dócil de “Yuppie star” do porta-voz americano.
O rosto do Bem, barbeado e sorridente; o sorriso da vitória, em comparação aos olhos cavados e à longa e vencida barba hirsuta de um patético profeta do Mal – a imagem da derrota do Mal.
É esta cenografia Mediática, esta encenação e dramatização colectiva, que nos é servida à hora certa, num telejornal perto de si, para gáudio da turba, para americano ver e para a fileira de comentadores avençados com o Novo Evangelho Americano se prostrar em abjectos aplausos (em Portugal esta é uma espécie profícua ululante).

Indecorosa e sevandija é também a reacção colectiva que a esquerdalha organizada na penumbra da ideologia vaga e de moralidade criteriosa.
Para a esquerda bem pensante e de moral higiénica, o homem que dizimou um milhão de curdos, que utilizou armas químicas contra milhares de compatriotas, que manteve um país refém de um medievalismo brutal e autocrático, é agora guindado à condição de Mártir.
Falta pouco para ser o ícone-pop de uma nova esquerda cega pelo ódio ao Novo Evangelho Americano, e passar a coexistir nas t-shirts das barracas do Avante ao lado do Che Guevara.
Uma esquerda sem discernimento, baralhada e dada a espasmosas indignações cutâneas, brandindo a sua moral superior contra os moínhos de vento, num quixotismo cegueta.
A esta esquerda, o meu – Não, muito obrigado.
A prontidão com que o PCP se indignou com o método de exibição do Troféu de Caça dos americanos é verdadeiramente deplorável, quando ao que julgo saber, nunca lhes ouvi um pio, quando a carcaça esventrada e baleada de Jonas Savimbi – cadáver entregue ao mosquedo – foi exibida em horário nobre em todas as televisões portuguesas, graciosamente facultada pelo Governo canalha e parasitário de José Eduardo dos Santos e do MPLA, antigos dilectos dos comunistas.
Este relativismo moral segundo critério ideológico que o PCP e a esquerda moderninha exibem despudoradamente, variando a magnitude e afabilidade do Monstro Genocida em função do seu vínculo ideológico; isto é sem dúvida uma pestilência que se cola à pele da esquerda, que se não fizesse da memória um instrumento de conveniências, recordaria decerto que a sua matriz fundadora tem um Monstro com o curriculum de José Estaline. Mesmo esse é ainda hoje um monstro relativo, passível de enquadramento contextual e desculpabilização delirante.
Basta ir lendo umas artigalhadas da velha e nova guarda pretoriana do heterodoxismo comunista, para perceber que para essa esquerda – Os monstros genocidas são todos iguais, mas há uns monstros mais iguais que todos.
Esta caçada mostrou mais uma vez que o Mundo está um nojo, e como dizia Céline – “resta pouca esperança que um dia a merda venha a cheirar bem”.

Rui Pelejão

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