terça-feira, outubro 28

Os pobres de espírito

As vaias de que foram alvo o primeiro-ministro e o presidente da câmara municipal de Lisboa na inauguração da nova catedral do Benfica, bem como as ilações políticas e sociais que daí decorreram, só vêm confirmar como este país é terreno fértil para factos políticos de alcova. E, bem vistas as coisas, até é coerente que eles comecem agora a germinar também em estádios de futebol. Os apupos de largos milhares de benfiquistas, ao vivo e em directo, mereceram os comentários dos mais vestutos analistas políticos da nossa praça, tiveram honras de destaque por toda a imprensa nacional, suscitaram análises sociológicas de algibeira e uma onda de choque que alguns quiseram transformar num pré-escrutínio eleitoral. Esta dependência obsessiva da política mais festivaleira embrulhada no frenesim medieval do "pão e circo" é só para fracos de espírito. Sendo que são fracos de espírito os que apuparam, os que atribuiram uma importância desmesurada a essa orgia vocal e, claro, quem foi vaiado não está totalmente isento de culpas na cartilha.
Sejamos objectivos e evitemos (para já) juízos de valor: vaiar duas das personalidades políticas que mais apoiaram a construção do novo estádio da Luz parece-me, no mínimo, uma enorme falta de gratidão. Cuspir nas mãos que cederam terrenos e estenderam milhões é escrever na testa "sou pobre" e na barriga "mal agradecido". Pobres e mal agradecidos também para com o zé povinho que, fatalmente como o destino, é quem acaba por pagar a factura de tal circo futebolístico, seja pelo que já saiu do seu bolso ou pelo que não vai entrar nos próximos tempos. Os adeptos do benfica, tal como os de todos os clubes de futebol envolvidos no Euro 2004, bem como a indústria que gira em torno do desporto rei só têm motivos para aplaudir a classe política. E, já agora, a ter algum respeito por quem aperta agora o cinto e faz figas para que o campeonato europeu da bola seja a gruta de Ali Babá que os mesmos ladrões de sempre prometem.
Ou será que os onanistas da análise política, os professores feitos a "martelo" como o vinho rasca, não são capazes de estabelecer uma relação, por exemplo, entre o esforço financeiro exigido para a construção de todas as arenas do Euro 2004, e os cortes orçamentais para o PIDACC (Programa de Investimentos e Despesas de Desenvolvimento da Administração Central) do próximo ano: o ano do Euro? Ah, pois não leram o Jornal do Fundão desta semana? Não são sensíveis a estabelecer relações tão profundamente macro-sociais? Preferem, talvez, o conforto da verborreia franco-atiradora galvanizando o instante pitoresco numa poderosa "vaga de descontentamento social", como avançaram nas suas finas análises. Et voilá, acena-se com um facto político acabadinho de sair da cartola, sem dúvida a ser debatido num forum radiofónico no outro dia de manhã. Para gaúdio de todos quantos lá estiveram aos berros e assobios é a glorificação em massa por representarem o voxx pop.
No entanto, o que resta na espuma dos dias é uma sensação confrangedora de mau-comportamento, um episódio triste que acabou por azedar e ensombrar a festa de inauguração de um estádio de futebol. Era somente disso que se tratava (se vaiassem o Scolari, até se percebia).
Convém nunca esquecer que nem toda a gente concordou com o Euro 2004 em Portugal, nem toda a gente ficou a sorrir quando soube das somas envolvidas que, muito provavelmente, iam ser desviadas de outros sectores importantes (como o investimento no interior do país, que vai ser escandalosamente reduzido para o ano que vem) só para que existissem estádios de futebol em barda por esse país fora para albergar dois meses de "pão e circo". Por isso me chocou tanto aquela vaia. E não me venham dizer que a voz do descontentamento social falou mais alto naquele momento. Tretas! A voz do descontentamento social está nas greves que grassam por esse país, nos trabalhadores que gritam à porta das fábricas por emprego, na educação que cobra aquilo que não retribui, no interior eternamente à espera de todas as formas de justiça. Isso é a voz do descontentamento. Apupos num estádio de futebol são as vozes dos pobres de espírito.

Bruno Ramos

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