domingo, outubro 19

O país da risca ao meio

Este é o país da risca ao meio. De norte a sul o cinzel da história, e de todos os condicionalismos, gravou indelévelmente uma linha fina a meio do país que só se dilui quando encontra o Algarve. Daí para cima temos um Portugal dobrado ao meio. São duas faces que se desconhecem, com os olhos postos em horizontes diferentes.
De um lado o mar e todo o fado de um povo carente do império. A obstinação das cidades grandes e do seu hipnótico canto, que chama à sua voragem magotes de gente, sejam eles pobres camponeses do país profundo ou emigrantes de leste profundamente pobres.
Do outro lado, o crescimento disfuncional da história e das regiões, o isolamento capaz de criar assimetrias demoníacas mas também de preservar o belo. E é deste lado da linha que está o país do deslumbramento, escondido nas serras e nas paisagens do interior. Longe do alcatrão, fechado num tempo sincero e povoado por gente de feitio escarpado como a paisagem que a circunda. Desconfiados ao primeiro contacto, logo se abrem num sorriso amigo quando dizemos que vimos por bem. Lá, Portugal ainda está intacto como quando o mando da terra marcava o tempo das gentes. E sente-se esse silêncio nas pessoas como que a escutá-la. É também o silêncio pesado da fuga dos que foram em busca de vida menos madrasta e da culpa atirada para as costas dos que ficaram.
Atravessar essas duas realidades só se faz de peito aberto e com uma improvável capacidade de deslumbramento na bagagem. Imagine-se, atravessar a essência do país em apenas duas horas e meia! Depois de deixar para trás o vislumbre do que ainda somos lá no interior, chegar volvidos somente 300km à meca de tudo o que queremos vir a ser: Lisboa, essa cidade branca e de rio largo. Cidade de Babel, das vielas castiças às 1001 noites a diferença está somente nos odores, porque de mística e exótica tem a alma. E, para mim, são dois fluidos num mesmo sangue. O interior e as cidades estão-me nos gestos, na afabilidade, nessa herança comum em que somos enlevados desde crianças: a língua materna. Falamos a mesma língua. Viémos do mesmo pó mas não nos conhecemos.
Eu senti isso na pele, achava que considerar-me mais sensível do que a maioria ao silêncio do país profundo e à sua beleza era ter cada um dos pés mergulhado nessas raízes gémeas. Pensava que fugir por estradas secundárias e caminhos rurais de fim-de-semana sempre que o barulho de Lisboa se tornava insuportável, bastava para ter na boca o sabor do feno e nos olhos a compreensão da distância. O resultado até nem foi mau: a presunção lançou-me para o interior desafiando-me a viver à sua altura- água-benta é que ainda não tenho muita!
O que verdadeiramente ganhei foi voltar a sentir a mudança das estações sem perder a cidade. Sou um urbano no interior e um aldeão na capital. Gosto de ver o sol pôr-se por detrás de uma serra violácea de tanta urze e de vê-lo da varanda de uma discoteca nascer sobre o Tejo. Sei o que é um computador portátil, um telemóvel e um memorybird mas também sei o que é um arado, um aceiro e a cresta. Sei o que é um anti-vírus mas também sei que parasitas enfermam as aldeias. E o desconhecimento é o mais vil de todos. É ele que comanda o silêncio que vem de cada um dos lados da linha, esse fosso cavado até ao abismo pela tremenda ignorância de dois países que só se encontram na histeria dos telejornais.
O que falta é acordar dessa ausência mútua. O torpor imposto pelo discurso fatalista do sub-desenvolvimento rural é feito na mesma língua dos que gritam a inevitabilidade das cidades. Só estando num e noutro lado se percebe como a nascente é comum. No fundo, somos todos nós.

Bruno Ramos

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